quinta-feira, 28 de junho de 2007

the chance encounter of a sewing machine and an umbrella on an operating table

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Um homem sai do metrô e alguém entrega a ele um mapa; um desenho confuso, vago, de retas e curvas (parece o plano-piloto de Brasília). Ele olha, tenta decifrar, segue pela cidade as pistas do mapa, o homem de chapéu, carregando uma pasta. Anda até chegar a uma rua, uma parede, um vão na parede. Entra. Dentro, encontra o diabo.

Essa é a historia do filme que vi semana passada, no BFI, em Southbank (um lugar com cinemas e um bar bem legal na beira do Tâmisa, perto da Waterloo Station e da galeria Hayward). É uma releitura do Fausto, do Goethe, feita pelo Jan Svankmajer.

O filme é cheio de bizarrices (um ovo dentro de um pão, uma mesa que jorra vinho, cabeças rolando pela floresta) e por isso, cansa um pouco -- às vezes, a máquina de costura não funciona e o guarda-chuva do Lautréamont emperra pra valer. Mas a mistura de teatro de bonecos, atores reais e stop-motion é sensacional. São incríveis as cenas em que o protagonista do filme é manipulado como se fosse uma marionete. Dá pra ver, no alto da tela, mãos coordenando os fios, fazendo o personagem ir de lá pra cá. Outra coisa interessante é a cidade onde o filme se passa, Praga, mas uma Praga dilapidada, de ruas vazias, prédios e muros velhos, destruídos. Milos Forman disse que Svankmajer é o encontro de Disney e Buñuel. Imagino os dois num parque à noite, sentados num banco, olhando os guindastes. Tim Burton e Terry Gilliam chegam com umas cervejas, o Georges Méliès traz o vibrafone.

O BFI está exibindo filmes do Svankmajer. Entre eles, uma versão da Alice (em que a personagem também se perde, entra num vão, o buraco na árvore) e de "A Queda da Casa de Usher", conto do Poe.

Dois trechos da Alice, aqui e aqui.
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segunda-feira, 25 de junho de 2007

up the apples and pears

Os primeiros dias em uma cidade têm o peso dos sonhos. O de sempre, tudo diferente: quilos de batata, a cerveja em lugares escuros, patos pendurados numa vitrine. No alto do Hampstead Heath, parque enorme perto de casa, dá pra ver boa parte da cidade. Os prédios são baixos e a paisagem, pontuada por guindastes. Enormes, os guindastes -- porque todo o resto é pequeno demais. No Shu Bar, no Soho, a gente pede um fire-exploded kidney flowers. Rins de porco, vegetais e cogumelos. Quando submetidos a alta temperatura os rins desabrocham. Em Camden, escolher um prato pelo nome é tão divertido quanto escolher um livro pela capa.

 
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turma do milkshake

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Há cerca de um ano, o Cassiano (Elek) e eu entrevistamos o Roberto Piva. Lembro que depois do papo (no apartamento dele, em Santa Cecilia) demos uma carona para o Piva, que ia encontrar um amigo num restaurante perto dali. No caminho, falamos sobre torresmo, espaguete e sobre como o imprevisível praticamente inexiste no mundo de hoje (o Cassiano discordou, apontando um posto de gasolina com restaurante chinês dentro). Piva não quis ser fotografado. Acho que preferia estar com os amigos: Rimbaud, os beats (em especial Ginsberg e Corso), Murilo Mendes e Nietzsche. Ou calçando os sapatos de abóbora do surrealismo. Não o surrealismo do nonsense pelo nonsense, em que a ausência de sentido é só uma regra estética, mas o surrealismo das imagens convulsivas, das aventuras urbanas, das alucinações -- "em matéria de arrancar o homem de si mesmo, há o surrealismo e mais nada", escrevia Georges Bataille, em 1946.

Ícone da poesia dos anos 60, Piva nunca se filiou a nenhum grupo. É conhecida a frase de Piva, que completa 70 anos em setembro, segundo a qual "não existe poeta experimental sem vida experimental".

Ou como escreve Annie Le Brun sobre o surrealismo: "revolta contra a ordem social, é claro, mas que não passa da consequência de uma revolta incomparavelmente mais profunda, vasculhando nas raízes do ser esta 'sede insaciável do infinito' de que fala Lautréamont e que nenhuma mudança social poderá satisfazer".

Trechos da conversa foram publicados na Trip de maio.

Abaixo segue a entrevista. E um quadro do De Chirico.

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Paranóia (1963) é uma espécie de retrato delirante de São Paulo. Como você enxerga a cidade hoje? Eu não enxergo mais nada. O poeta lida com a face invisível do planeta, está preocupado com a dimensão cósmica. A poesia não tem existência no real, nasce do real imaginário, da subjetividade do poeta. Paranóia é um poema urbano. Estou na cidade, mas não sou da cidade. Pra mim, toda metrópole é uma necrópole, um vasto cemitério. São Paulo mudou muito por causa da sociedade e da criminalidade de massa. Antes a cidade mantinha um lado rural, hoje os garotos da periferia são pálidos criminalóides. Podem te dar um sorriso ou uma facada. Matam por causa de um tênis. Paranóia foi a forma que encontrei para exorcizar a cidade e todo câncer urbano.

Você acha que seria possível fazer um livro como o Paranóia hoje? Ou a cidade já não permite essa presença na cidade? Ah! Não permite. É uma experiência única. Eu nem ando mais por São Paulo. Costumo viajar para fora da cidade. No fins de semana, eu e alguns amigos pegamos a estrada e vamos para o infinito. Serra da Cantareira, São Roque, Jarinu, Ilha Comprida, esses lugares.

Você tem vontade de se mudar de São Paulo?
Eu gostaria de morar num sítio, mas não tenho grana.

Na década de 60 existiam muitos grupos literários (os concretistas, a poesia engajada). Você nunca se filiou a nenhum deles. Eu sempre fui um franco-atirador. Por não ter me juntado a esse pessoal, à esquerda intelectual, eu fui boicotado durante anos. Porque eu não fazia parte da “tchurma”. O intelecual brasileiro entra em partido político pra lavar chão, pra ser devoto, quando na verdade devia entrar pra criticar, esculhambar.

Durante muito tempo você foi professor, mas sempre foi crítico à Universidade. A educação deveria ser como no Banquete de Platão: conhecer os corpos para depois conhecer as almas. As universidades deviam ser substituídas por terreiros de candomblé.

Você teve uma experiência forte com o xamanismo, não? Eu fui iniciado no xamanismo e nem sabia que aquilo se chamava xamanismo. Foi aos doze anos, na fazenda do meu pai. Um mestiço de negro com índios apontava o fogo e me fazia ver figuras. Ele interpretava as minhas visões. O xamanismo é uma religião de poesia, não de teologia. Assim como no candomblé, a tradição xamânica é oral. Não é escrita, como na religião católica. Hoje, eu não me ligo a nenhuma religião organizada.

Você também tem interesse em UFOs, OVNIs.
Eu nunca vi discos voadores, mas eles existem e são muito importantes para criticarmos a ciência. É importante criticar o racionalismo. O reducionismo cartesiano emperra qualquer visão profunda da realidade.

Você é feliz? Muito. Não sou nem um pouco infeliz. Só é possível ser feliz quando se está nadando contra a corrente de mediocridade. Daí a realidade fica mais alegre, mais profunda, mais dionisíaca. O que me faz feliz é a leitura de um bom livro, o amor, sair de São Paulo para as matas, para as praias, caminhar pelos campos, montanhas.

Mas você é um poeta símbolo de São Paulo.
Ai, que horror!

Qual o lugar do sagrado no mundo de hoje? Isso é subjetivo, depende de cada um. Eu sou, como disse o Garcia Lorca, um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado. Temos que profanar o sagrado e sacralizar o profano. Não entendo o sagrado como devoção. O sagrado está na natureza, ele está disperso em tudo, basta sabermos aglutiná-lo. Estamos vivendo a falência das religiões monoteístas: do comunismo, do islamismo, do cristianismo, do judaísmo. É aquela coisa: em toda religião monoteísta o meu Deus é melhor que o seu. No candomblé, por exemplo, não. Todos os orixás se equivalem. Cada um tem a sua função, mas todos se equivalem. Iemanjá não é maior que Xangô. Xangô não é maior que Exu. É uma visão politeísta de mundo.

O pensador francês Michel Maffesoli acredita que a atual relação do homem com o sexo, a violência, as drogas está relacionada a uma espécie de renascimento dionisíaco. Acredito que o homem está mais solitário e hedonista. Porque, hoje, todas essas experiências (sexo, violência, drogas) foram cooptadas pela cultura de massa, pelos jornais, pela televisão. Não querem dizer mais nada.

Você assiste televisão?
Assisto, sim. Gosto de ver o Animal Planet e o Discovery Channel.

Como é o seu processo de criação hoje? Eu nem sei te explicar, não saberia te explicar. Escrevo muito pouco. Nunca reescrevo. Do jeito que veio fica. Não posso perder tempo escrevendo, a vida é maior.

Li que você foi um dos primeiros a tomar LSD em São Paulo, é verdade? Eu não sei, não fiz uma enquete sobre isso (risos). Tomei quando veio até mim, não procurei nem nada. Foi na Cantareira nos anos sessenta. Teve um papel importante na minha poesia. A revolução psicodélica talvez seja a única que tenha algo a dizer ainda hoje.

Você acha que a experiência com drogas é muito diferente hoje daquela que se tinha na década de sessenta? Depende. Tem aquela pessoa que cheira cocaína e mata a família. É o que acontece quando se dá cocaína para a turma do milkshake. Com o índio boliviano não acontece isso. Ele toma chá de folha de coca, e não mata ninguém. Agora, a turma do milkshake tem aquela subjetividade de esquina, de cheeseburguer. Eles cheiram e acabam com a vida do primeiro que aparecer.

Qual a importância da experiência para a literatura? A importância é total. A geração atual é muito protegida, cheia de psicólogos, pedagogos, não pode quebrar a cara nunca. Está cada dia mais sem iniciativa, burrificada. A única doença que pega é a burrice. Tem também os anti-depressivos, que fazem parte de uma conspiração flagrada pelo Wilhelm Reich, quando ele falava da indústria do câncer. Reich mostrou que a cura do câncer é quase impossível porque há uma indústria que lucra com a doença. Ninguém enfrenta impunemente a máfia dos médicos, a máfia de branco. Por isso Reich foi parar na cadeia em 56. Estamos vivendo hoje a industrialização do medo.

Não é interessante que numa sociedade cada vez mais maluca, as pessoas experimentem cada vez menos, tenham uma vida cada vez mais protegida? A metrópole maluca não deveria nos levar a experiências ainda mais malucas? Esse “maluco” não é dionísiaco, mas sim programático e programado. A felicidade é sempre individual, nunca coletiva. Mas é preciso desmarxizar o pensamento pra entender isso. O coletivo não passa de uma grande cruzada para se ganhar dinheiro.

Como é reler coisas que você escreveu há quarenta anos?
Isso que chamam de "história" é meu plano de fuga da civilização de vocês.
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