terça-feira, 2 de dezembro de 2008

cara de paisagem

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(John Stezaker, Masks, 2006-07)
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quinta-feira, 20 de novembro de 2008

um assombro quando paramos pra pensar

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"E ele acabou se convencendo de que tem o dever de acompanhá-la, que assim vai pagando à prestação a dívida que tem com ela, como está pagando a que tem comigo; e agora, nesta tarde de sábado, como em tantas noites e meio-dias, com bom tempo, às vezes com chuva que se junta à que sempre está regando o rosto dela, vão juntos para lá de Retiro, caminham pelo cais até que o barco parte, misturam-se um pouco com as pessoas com capotes, malas, flores e lenços e, quando o barco começa a se mover, depois do apito, ficam rígidos e olham, olham até não mais poder, cada um pensando em coisas bem diferentes e ocultas, mas de acordo, sem o saber, na desesperança e na sensação de que estamos sozinhos, sempre um assombro quando paramos para pensar." (Onetti; Esbjerg, na costa)
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domingo, 16 de novembro de 2008

mundo à milanesa

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Há uns dois anos, fiz (para a Trip) uma entrevista com o Isay Weinfeld. Já conhecia o Isay por causa da Paula, filha dele, minha amiga. E também porque a gente se reunia nas noites de sexta pra sessões de cinema no apartamento dele. Foi lá que vi pela primeira vez o Fanny & Alexander, do Bergman (filme em que pensei muito enquanto psicografava o Chibo). O Isay apresentou pra gente o Claude Lelouche, o Viver por viver, com aquelas cenas em que a música sobe e os personagens seguem falando, falando, abanando os braços feito galhos, e a gente entende tudo, mesmo sem o som dos diálogos. Na semana passada, encontrei o Isay. Conversamos sobre cinema (ele disse que está pensando em voltar a filmar) e lembrei da entrevista, que na época precisei editar um pouco. Abaixo, segue na íntegra.

Você passa muito tempo sozinho?
Tenho necessidade de solidão, de ficar quieto. Li uma vez que estavam instituindo nas escolas da Inglaterra aulas de nada. Cinquenta minutos de nada. Obrigatoriamente nada. Apenas para pensar. Achei o máximo.

Sei que você gosta de Londres, qual a sua relação com a cidade?
Aos 14 anos tive o meu primeiro contato com Londres. A cidade é a mistura perfeita entre metrópole e cidade do interior. Uma coisa que me chamou a atenção desde cedo em Londres é a plaquinha nas escadas rolantes dos metrôs: “please, stand on the right”. Isso pra mim é o exemplo mais bem acabado de respeito e educação. Londres permite que andemos a pé, o maior sinônimo de qualidade de vida que um lugar pode oferecer.

Você caminha por São Paulo?
Não. A cidade é muito feia. No meu bairro, Higienópolis, por exemplo, os prédios são predominantemente residenciais. Isso é terrível. Eles deviam ter comércio embaixo; livraria, barzinho, loja de CDs. Tudo em São Paulo deveria ter uso misto. É uma delícia caminhar por lugares assim. Andar na Gabriel Monteiro da Silva e só ver decoração é chato, incomoda. Se existisse uma mescla teríamos mais prazer em caminhar na cidade.

Qual a rua mais feia de São Paulo?
Impossível saber. Isso aqui é um concurso com milhares de candidatos. A avenida Santo Amaro, por exemplo, é muito feia.

O que você faria para melhorar São Paulo?
Deceparia tudo o que estivesse acima do quarto andar.

Como a arquitetura entrou na sua vida?
Quando era criança vi a maquete de um prédio. Lembro de ter ficado imaginando a vida das famílias em cada um dos andares. Essa é a primeira lembrança que tenho relacionada à arquitetura. Mas não acho que eu tenha nascido para ser arquiteto. Inclusive, não acho que sou arquiteto, nem quero me considerar como tal.

O que você é então?
Outro dia li em algum lugar que meu trabalho é multifacetado. Até entendo que as pessoas achem isso. Mas não significa que eu seja multitalentoso. Às vezes produzo um cenário, projeto uma casa, faço um filme. Mas não tem multitalento nenhum. Faço sempre a mesma coisa. Faço arquitetura, mas poderia ser um filme, por exemplo. Não me sinto arquiteto. Nem quero que a minha vida seja apenas isso, não quero ser especialista em nada.

Numa das suas exposições, Happyland, você ironizava o comportamento de pessoas que blindam seus carros, que se encastelam por medo da violência. Mas a maioria dos seus projetos são privados, casas de pessoas ricas, com muros altos.
O tipo de pessoa que critico nessas exposições eu não atendo no meu escritório. A coisa mais importante que alcancei na minha profissão é o fato de poder dizer não. Não ser obrigado a me violentar. Eu jamais faria um palacete em estilo neoclássico. Mas se um dos meus clientes precisa de uma guarita porque a cidade é violenta, não vejo nenhum problema em atendê-lo. As pessoas que atendo não são as mesmas que compram livro por metro ou que moram num lugar só para mostrar quanto dinheiro tem.

Você falou das construções neoclássicas, a cidade está cheia delas. Tem também os bares cariocas em São Paulo, que poderiam estar num pavilhão do Rio no Epcot Center.
Morro de rir com a criatividade das pessoas. Não entendo porque acham brega o bingo de tema africano que foi construído na avenida 23 de Maio. Chamam aquilo de arquitetura temática, pejorativamente. Ninguém se dá conta que a cidade está cheia de outros tipos de arquitetura temática. Por que o neoclássico é um “estilo” e o bingo africano é um tema? O “estilo” francês de casas e lojas é um tema também, não um estilo. Só que ninguém diz isso. Las Vegas, por exemplo, é um tema. E é maravilhoso. Não acho que o bingo da 23 de Maio seja brega. É um projeto muito bem-feito dentro do tema africano. Existem construções temáticas em São Paulo muito piores que o bingo.

A única obra pública que você realizou até hoje foi a praça da rua Amauri. Você tem vontade de fazer mais obras públicas? Qual a função pública do arquiteto?
O arquiteto tem que saber se calar. Deve saber quando fazer uma arquitetura silenciosa. Já tive chances de construir um marco na cidade, um lugar onde as pessoas poderiam dizer: “puxa, isto é uma obra feita pelo Isay”. Mas acho isso uma bobagem. Quando se trata de uma coisa pública, o arquiteto deve deixar o ego em casa e fazer algo em benefício da cidade. Há certas ocasiões que não são para mostrar o talento nem provar que se é um arquiteto genial. De vez em quando é preciso evidenciar o talento sabendo ficar quieto.

Se fosse encarregado de recriar Brasília, o que mudaria?
Brasília é uma cidade onde falta essa coisa importantíssima chamada esquina. Isso de estarmos caminhando e, de repente, o espaço se abrir e conduzir nosso olhar para um lugar novo, inesperado. Essa surpresa falta a Brasília.

O que acha de Brasília?
Utopia, fantasia, melancolia. Palavras que tem tudo a ver com Brasília, e comigo também.

Certa vez você disse: “Gerações foram caladas pelo fato de que toda obra pública importante é entregue a um arquiteto só: Oscar Niemeyer.”
Continuo achando isso. Mas a culpa não é do Niemeyer, é da falta de imaginação dos governantes. Eles têm medo de errar e acabam entregando as obras para uma pessoa só.

Gosta do trabalho do Niemeyer?
Niemeyer é um grande artista, mas nunca teve influência na minha vida. Ele é um grande escultor, que fez das esculturas arquitetura. Algumas de suas esculturas são deslumbrantes e adaptadas para determinados fins. Não é assim que vejo o trabalho do arquiteto. Considero a função muito importante em arquitetura. Se é um museu, ele deve funcionar, antes de mais nada, como museu. Não adianta ser impactante, lindo por fora se não funcionar para o que foi destinado. Lina Bo Bardi sempre teve muito mais a ver comigo.

Que projeto contemporâneo você mais gosta?
O Museu de Arte Moderna de Nova York, do Yoshio Taniguchi.

Você é se preocupa bastante também com os interiores. Isso faz com que alguns arquitetos te chamem de decorador, pejorativamente.
Antigamente eu achava outra coisa, hoje acho que é despeito mesmo. Quando eu fazia cinema, falavam: o Isay é aquele arquiteto que faz cinema. Depois, passaram a dizer: o Isay é aquele cineasta que faz arquitetura; é o decorador que faz cenários; o cenógrafo que faz arquitetura. Esses rótulos não me interessam. Fazer decoração é tão importante quanto fazer arquitetura, design, urbanismo ou cenografia. Um não é menos complexo do que o outro. Pra mim o desenho do botão da campainha é tão importante quanto o resto.

O que há de brasileiro na sua arquitetura?
Eu. Eu sou brasileiro, não basta? Ser brasileiro é trabalhar com materiais brasileiros? Eu trabalho. Só não sei ser caricato. Ou será que para ser brasileiro tenho que me inspirar nas curvas das montanhas do Rio de Janeiro? E se eu for influenciado pelas retas de São Paulo, isso não é ser brasileiro?

Que projeto você ainda não fez mas gostaria de fazer?
Um bordel, uma escola de samba, um cemitério, um cinema. Mas faria um cinema com cortina. Ela vai se abrindo, desvendando aquela tela enorme. Há anos eu e o Leon Cakoff temos vontade de fazer um cinema juntos.

Quando começou a fazer cinema?
Eu estava no cursinho, tinha 17 anos, e me reencontrei com o Marcio Kogan. Nossas famílias eram amigas, mas nunca tínhamos tido muito contato. Ele também era apaixonado por Bergman, estávamos ligados nas mesmas coisas. Na época, o Marcio tinha acabado de ganhar uma câmera Super 8. Resolvemos então rodar um filme na cozinha da minha casa. O Marcio me filmava fazendo o jantar. Eu estava todo de preto fritando um ovo, a trilha sonora era a marcha fúnebre. Uma coisa meio surrealista, meio underground. Em 1983, fizemos o Idos com o Vento, que ganhou o festival de Gramado e outros festivais fora do Brasil.

Como foi filmar o Fogo e Paixão (1988)? O que acha dele hoje?
Eu ainda gosto do filme. Acho, evidentemente, que ele tem vários problemas. O ritmo, por exemplo, é muito lento. Acho que poderia ser mais agitado se tivesse uma outra edição. Mas foi um grande sucesso, considerado o melhor filme brasileiro do ano. A direção de arte era inédita na época. Os papéis principais foram feitos por um grupo de teatro genial, o Pod Minoga [Mira Haar, Cristina Mutarelli, Carlos Moreno]. O filme contava também com participações da Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Tônia Carrero.

Pensa em voltar ao cinema? Pretende filmar o Palace Hotel?
Tenho muita vontade de retomar esse roteiro. Uma época eu e o Marcio pensamos em adaptá-lo para o teatro, caso não filmássemos. A história é sobre um fim de semana em um hotel que já foi elegante, mas que está decadente e será transformado em outro empreendimento. Narra a vida do staff do hotel e dos hóspedes nesses últimos dias.

Como o cinema influencia sua arquitetura?
Principalmente pela fotografia. Os ângulos de uma cena ou de uma sala, o clima, a simetria, a luz. Não filmei o Palace Hotel, mas projetei o Hotel Fasano. Acho tudo muito parecido. Escrever o roteiro, fazer o croqui de uma obra. Começar a desenvolver o projeto, montar a pré-produção do filme. Em ambos existe uma certa manipulação do espectador.

Quem são seus ídolos?
O Ingmar Bergman era e continua sendo meu grande ídolo. Ao lado dele, colocaria o Haroldo, um professor de português que tive no Rio Branco. Ele ensinava redação com frases muito curtas. Uma frase e ponto, uma palavra, ponto. Ele falava que o principal numa redação é a primeira e a última frase. Tudo pra mim, até hoje, tem relação com isso. Esse professor, o Haroldo, adorava cinema. Ele organizava sessões no colégio. Foi numa delas que, com 14 anos, vi pela primeira vez Morangos Silvestres, do Bergman

Como você reagiu ao filme?
Ele mudou minha vida. A ponto de eu viajar até Estocolmo e ir atrás do senhor Bergman. Chegando lá me decepcionei com a cidade, que eu achava que era um lugar em preto-e-branco como nos filmes dele. No hotel fui direto à lista telefônica. Descobri então que Bergman é como Silva aqui no Brasil. Existia um bilhão.

Como foi a sua infância?
Nasci em São Paulo, em 1952, no Bom Retiro. Meu pai era polonês. Quando chegou ao país, depois da guerra, vendia colchas e lençóis de porta em porta. Depois montou uma malharia que acabou virando uma indústria têxtil. Da minha infância lembro de coisas como o misto-quente da mercearia do Seu Vicente, no Bom Retiro; os tijolos de vidro do piso da mercearia; o elevador do prédio onde eu morava; a árvore no pátio do Jardim Escola São Paulo. No colégio Rio Branco, lembro de jogar futebol. Como tinha bronquite asmática, ficava no gol – acho que era um péssimo goleiro.

Você era um filho mais rebelde ou mais bonzinho?
Muito cedo, comecei a viajar para Londres. Voltava de lá sempre de um jeito, o cabelo comprido, pintado de prata, vermelho. Chegava em Congonhas e quase não me reconheciam. Saía daqui um bicho e voltava outro. Durante anos me vesti só de preto também, isso pré-Gerald Thomas. Usava sapatos com solado alto, salto plataforma. Minha rebeldia era mais neste sentido.

Você gosta de moda?
Gosto, mas não sou de grifes. Odeio etiqueta, logomarcas. Nunca comprei uma roupa que tivesse um logotipo aparente. Acho genial o trabalho do Paul Smith. Na loja dele é possível encontrar uma camisa branca com a costura do botão do punho em vermelho. Ele faz roupas assim, clássicas, mas com uma nota dissonante. Isso tem muito a ver comigo e com a minha obra.

Gosta de ir à praia?
Vou menos do que gostaria. Mas não gosto das coisas ligadas à praia. Tenho medo de mar, não gosto de areia, não gosto dos trajes de praia, dos mosquitos. Gosto da praia no inverno, da solidão, da quietude. Detesto tomar sol. Vou por causa do barulho do mar, do vento e da cor da água.

A Paulinha me contou que você fez uma viagem a Polônia para entender melhor a história dos seus pais e avós.
Foi há dois anos. Meus avós eram donos de um moinho numa cidade muito pequena do interior da Polônia. Tinham quatro filhos. Quando a Segunda Guerra começou eles pagaram para uma senhora católica esconder os filhos, que ficaram por mais de dois anos embaixo do piso do quarto dela. Só saíam de madrugada, rapidamente. Essa senhora, no entanto, se tornou amante de um oficial, e certa noite, na cama, o oficial contou a ela que tinha acabado de matar o casal Weinfeld. Os quatro filhos estavam escondidos no quarto e ouviram tudo. Sempre escutei meu pai contar esse episódio, e quando ele morreu, há cinco anos, fiquei com vontade de ir a Polônia conhecer o lugar onde ele viveu com meus avós.

Como foi a viagem?
Fui com um casal de primos. Sabíamos apenas os nomes da cidade e da mulher que havia escondido nossos pais e tios. Depois de muito perguntar e caminhar pela minúscula cidade, conseguimos encontrar a casa onde nossos pais tinham sido escondidos. A casa existia ainda. Nela morava uma família muito pobre e numerosa. Fomos convidados a entrar na casa, no quarto. O senhor, dono da casa, puxou um armário. O chão de tábua estava oco, era ali que meu pai e tios ficavam. A janela do quarto (a vista que meu pai me descrevia) estava na minha frente. Foi uma das experiências mais impressionantes da minha vida.

Qual sua relação com o judaísmo?
Tenho muito do humor típico judeu, isso é verdade. Mas não sou religioso. Não rezo, não vou à sinagoga. Minha relação com a religião é puramente gastronômica. Participo de jantares de confraternização, só. No entanto me sinto profundamente judeu.

Li uma entrevista em que você dizia acreditar em discos voadores.
Gosto de acreditar, acho que me faz bem. Sempre tive vontade de ser abduzido. Quando eu estudava no Rio Branco, eu tinha aula de ciências com um professor que presidia a Associação Brasileira de Estudos de Civilizações Extraterrestres. Comecei a me interessar, a participar das reuniões da associação. Cheguei, inclusive, a fazer parte de grupos de pesquisa que iam atrás de relatos de pessoas que tinham avistado OVNIs.

Qual sua bebida preferida?
Adoro cachaça. Destesto champagne e uísque.

Você se leva a sério?
As pessoas começam a afundar, sobretudo profissionalmente, quando passam a se levar a sério. Sou favorável, por exemplo, à total destruição do meu trabalho. Não acho que ninguém deva preservar nada dele. A cidade de São Paulo é assim, autodestrutiva, mutável. Não acho que nada do que eu faça tenha qualquer importância.

Hoje em dia há pouco de minimalismo aqui, não?
A base do desenho puro se manteve. Mas com o tempo aprendi outras coisas. Minha ex-mulher, por exemplo, me ensinou que dentro do meu minimalismo cabiam outros elementos. Uma renda, uma cortina de renda. Aprendi a aceitar isso, a ver beleza nisso. Aprendi a enxergar a pureza das linhas retas (que todo mundo vê com mais clareza num móvel moderno), aprendi a enxergar isso num móvel inglês do século XVII, por exemplo. Comecei a ler, conhecer mais e hoje eu sou um grande colecionador de cacarecos.

Tem algum medo?
De avião. Quer acabar comigo? É anunciar que meu vôo teve um problema. Pedir para que eu escolha: ou pegar um outro avião no dia seguinte ou esperar seis horas e pegar o mesmo. Fico imaginando que sempre vou tomar a decisão errada. Outro dia entrei no avião e começou a tocar uma música do Agostinho dos Santos, cantor que morreu num desastre de avião. Fiquei apavorado. Outra coisa que tenho muito medo é de panela de pressão.

Toca algum instrumento?
Comecei a aprender violino. Quando criança, com uns 10 anos, eu tocava harmônica. Me apresentava num programa de televisão da TV Record, aos sábados. Eu fazia um número.

Em uma entrevista, o Paulo Mendes da Rocha disse que tem horror a dinheiro e que o ideal do homem inteligente contemporâneo é não possuir nada.
Eu não tenho esse desprendimento. Mas um dia, eu ainda vou ser um Paulo Mendes da Rocha. Só que com uma pitada de Artacho Jurado [arquiteto de prédios como o Cinderela, em Higienópolis].

Para terminar, uma mensagem final.
O mundo seria melhor se fosse à milanesa.
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segunda-feira, 10 de novembro de 2008

o equivalente em diálogo

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"Para descrever bem um ruído, deve-se imaginar o que renderia o seu equivalente em diálogo. Na água-furtada, eu queria conseguir um som que tivesse o mesmo significado de uma frase que os pássaros poderiam eventualmente dizer a Melanie: 'Agora você não escapa. Vamos cair em cima de você. Não precisamos dar gritos de triunfo, não temos necessidade de nos enfurecer, iremos cometer um assassinato em silêncio.' Eis o que os pássaros estão dizendo a Melanie Daniels, e foi isso que consegui dos técnicos do som eletrônico. Para a cena final, quando Rod Taylor abre a porta da casa e vê pela primeira vez os pássaros, a perder de vista, pedi um silêncio, mas não um silêncio qualquer; um silêncio eletrônico de uma monotonia capaz de evocar o barulho do mar ouvido de muito longe. Transposto em diálogo de pássaros, o som desse silêncio artificial quer dizer: 'Ainda não estamos prontos para atacá-los mas estamos nos aprontando. Somos como um motor que está esquentando. Em breve daremos a partida'."

(Hitchcock, no Hitchcock/Truffaut)
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quinta-feira, 30 de outubro de 2008

para tornar uma viagem de táxi mais animada

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13 de maio

Antes que eu me esqueça: a história das calcinhas de Britt Ekland. Mais ou menos um ano atrás, quando cheguei ao meu escritório no National Theatre, tirei um livro do bolso do meu sobretudo e com ele veio junto uma calcinha de Kathleen. Ela caiu no chão, bem diante dos olhos de Rozina, [secretária de Tynan]. Só por malícia, e pela vontade de testar a velocidade e a durabilidade de uma fofoca, decidi inventar uma história sobre a maneira como aquela calcinha tinha ido parar no meu bolso. (A verdade é que, para tornar uma viagem de táxi mais animada, eu tinha pedido a K. para tirá-la, em pagamento de uma aposta. Depois, esquecera que estava no meu bolso.) Contei a Rozina — o que era verdade — que, na noite anterior, eu tinha ido à festa de aniversário de casamento da princesa Margaret e Tony. A rainha, o príncipe Philip e a rainha-mãe também estavam presentes. E então começava a mentira. Contei que tinha percebido que a rainha-mãe tomava copos e mais copos de um líquido claro, tirado de um frasco. “Gim, é claro”, observei para Britt. “Evidente que não”, respondeu ela. “Deve ser água.” “Pois aposto”, disse eu, “a sua calcinha contra dois lugares na primeira fila de Oh, Calcutá! que é gim.” “Está apostado”, disse ela. Então chamei um garçom de libré, dei-lhe uma gorjeta de dez shillings e fiz a pergunta. “Gim Gordon’s, senhor”, foi a resposta. Ao que Britt se retirou para o banheiro, voltou e me entregou a sua calcinha. Três dias mais tarde, fui abordado por um colunista de mexericos num clube noturno. “É verdade a sua história com a calcinha de Britt Ekland?”, perguntou ele. “Melhor perguntar a ela”, respondi. No dia seguinte, a história toda apareceu, contada por ele, no Daily Mirror. No mesmo ano, Britt vendeu a história da sua vida à revista People, que dedicou quase um número inteiro a perpetuar o mito que criei.

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12 de abril

A coisa mais inesperada que já ouvi dizerem, depois de um jantar, em meados dos anos 50. O dono da casa pediu aos convidados, despretensiosamente, que indicassem as três coisas de que mais gostavam no mundo. As respostas variaram entre o sério, o previsível (“os quartetos de Schubert”) e o previsivelmente leviano (“abotoaduras de ônix”), até Kitty Freud sacudir os cabelos escuros e declarar, com uma franqueza trêmula: “Viajar, boa comida e ser espancada no traseiro com uma escova de cabelo”.

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16 de abril

O maior acontecimento cultural da primeira parte da minha vida foi Cidadão Kane. Acreditando em tudo que eu lia (e que Welles dizia) sobre o filme, achava que fosse a obra de um homem só, concebido, produzido, escrito, dirigido e, predominantemente, estrelado por Orson. Essa idéia de uma obra de arte como um desempenho de solista afetou todas as minhas atitudes a respeito do teatro, do cinema e da minha própria carreira por muitos e muitos anos. Só fui encarar de frente a idéia da arte como colaboração muito tempo depois. Agora, os artigos de Pauline Kael sobre Cidadão Kane na New Yorker provam, sem dúvida, que Welles não escreveu qualquer das falas de Kane, e que a idéia e a sua execução (até o estágio de roteiro final, pronto para ser filmado) foram obra exclusiva de Herman J. Mankiewicz. Fiquei encantado, claro, com essa confirmação da minha convicção de que um filme é tanto (se não mais) obra do escritor quanto do diretor. Mas é um abalo profundo descobrir que uma parte tão importante da minha definição anterior de arte se baseava numa mentira.

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27 de maio

Voando para Nova York, para fazer pesquisas para o meu artigo sobre Wilhelm Reich para a New Yorker, comprei e li o último volume dos diários de Cecil Beaton. Como ele tem a sorte — neste único sentido — de ser veado e solteiro, é obrigado a usar o diário como receptáculo para a sua vida exterior e os seus pensamentos interiores. No casamento, os parceiros compartilham a vida exterior, que assim acaba sem registro, e extravasam a sua vida interior um para o outro, e para o provável esquecimento. Ainda assim (e escrevo isso em plena travessia do Atlântico), eu não trocaria Kathleen pela autoria de nenhuma obra-prima.

(Dos fabulosos diários de Kenneth Tynan. Mais aqui)
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quarta-feira, 15 de outubro de 2008

meu pai, 1965

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Minha amiga Flora, que é artista plástica, me mandou a foto abaixo, parte de um trabalho que ela vai inscrever em um programa de residência na França. Ela pediu para que diferentes pessoas escrevessem textos a respeito da obra, só a partir de fotos, sem saber NADA mais.

Minha contribuição, abaixo.
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Contato imediato, 2008

Em 30 de janeiro de 1978, Michigan foi devastada por uma grande nevasca e Stanley A. Perkins perdeu seu chapéu. O mundo nunca mais foi o mesmo. Além do mais as pessoas são feitas de cabeça, tronco e coisas -- as coisas se misturam às pessoas, as pessoas se misturam às coisas. O chapéu era um pedaço vivo de Stanley (Stanley era um pedaço morto do chapéu).

Depois do almoço, Flora e eu saímos para fotografar a obra. Era a nossa primeira vez em Lyon. Os três obstáculos de cimento estavam lá, como havíamos visto pela manhã. Ela olhou o relógio. Estava quase na hora de a quarta pedra pousar. Porque o mundo está lotado de objetos, mais ou menos interessantes, disse Douglas Huebler. Alguns somem, outros aparecem. O chapéu de Stanley A. Perkins, por exemplo, voltou para o seu planeta. Os hidrantes e os telefones públicos também, começam a tomar o caminho de volta. Flora posiciona a máquina: se forçar a vista, dá pra ver o granulado das naves de cimento. Quando dispara, a foto tem um som metálico. Meu pai esteve na cidade, em 1965. Na época, Lyon não tinha obstáculos para proibir os carros de estacionarem. Penso que essa foto era impossível; a imagem que a Flora me mostra no visor da câmera não existia, só passou a fazer parte do mundo agora, quando o último dos quatro objetos pousou no asfalto de Lyon. Um quinto objeto seria redundante, a Flora me diz. O artista não poderia criar um quinto objeto, só pode aceitá-lo e, quando muito, registrá-lo. As pessoas podem tropeçar nos objetos (um degrau sobressalente na escada, por exemplo). O artista deve ouvir em silêncio, ela me diz, registrar; ninguém nunca tropeçou numa foto. Mostro a foto para o meu pai. Quando ele esteve na cidade, em 1965 (ele dirigia um Volks), Lyon não tinha os quatro robôs de cimento. Ele me diz que não reconhece Lyon na foto (e comenta que há manchas no chão). Digo a ele que é uma obra de arte, em Lyon. Corrijo: é a foto de uma obra de arte, em Lyon. Ele sai da sala e volta com uma foto da cour d'honneur do Palais Royal de Paris. As colunas de mármore, onde as crianças brincam. O escritor polonês Witold Gombrowicz, em 1947, em um convescote em Buenos Aires, disse que não existe nenhum elemento específico capaz de definir um texto como poético. A noção de função poética da linguagem, criada por Jakobson (uma função específica que se manifestaria na atividade poética e que implica em certa distância com relação ao uso normalizado da linguagem), essa noção nunca existiu. Nenhum elemento na linguagem possibilitaria essa função poética.

Meu pai volta à foto de Lyon, os quatro alienígenas de cimento, no asfalto. Agora diz que, pensando bem, é uma obra de arte. A disposição para ler poeticamente é o que constitui um texto como poético? O significado da foto que a Flora tirou em Lyon seria fruto de uma disposição -- e não de uma essência, como queria Jakobson. E de um contexto. Se os obstáculos de cimento tivessem pousado sobre a catedral de Notre Dame (para continuarmos na França), o significado seria outro? Num texto de 1952 sobre a metáfora, Borges escreveu: "Sempre desconfiei que a distinção radical entre poesia e prosa está na expectativa diferente daquele que lê." Tudo se move, e o chapéu de Stanley A. Perkins ainda não foi encontrado.
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sábado, 20 de setembro de 2008

tomado de furores abstratos

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"Eu, naquele inverno, estava tomado de furores abstratos. Não direi quais, não é isso que me proponho a contar. Mas é preciso dizer que eram abstratos, nada heróicos, nem vivos; de qualquer maneira, furores pelo gênero humano perdido. Vinha assim há muito tempo, e andava cabisbaixo. Via manchetes nos jornais sensacionalistas e abaixava a cabeça; estava com os amigos, uma hora, duas horas, e ficava com eles sem abrir a boca; abaixava a cabeça; e tinha uma moça ou uma mulher que me esperava, mas nem com ela eu trocava uma palavra, mesmo com ela eu abaixava a cabeça. Chovia o tempo todo, passavam-se os dias, os meses, e eu tinha os sapatos furados, a água me entrando nos sapatos, e não era mais nada que isso: chuva, carnificinas nas manchetes dos jornais, e água nos meus sapatos furados, amigos mudos, a vida em mim como um sonho surdo, e não-esperança, calmaria. Isso era terrível: a calmaria na não-esperança. Dar o gênero humano como perdido e não ter vontade de fazer coisa alguma quanto a isso, nem vontade de me perder, por exemplo, com ele. Eu estava perturbado por furores abstratos, não no sangue, e ficava quieto, sem vontade de nada. Não importava que minha namorada estivesse me esperando, estar com ela ou não, ou folhear o dicionário, era para mim a mesma coisa; e sair para ver os amigos, ou ficar em casa, era o mesmo para mim. Estava quieto; como se nunca tivesse tido um dia de vida, nem jamais soubesse o que é ser feliz, como se nada tivesse a dizer, a afirmar, a negar, nada de meu para pôr em jogo, nada a escutar, a dar, e nenhuma disposição de ganhar, como se em todos os anos de minha vida nunca tivesse comido pão, bebido vinho, ou tomado café, nunca tivesse estado na cama com uma mulher, nunca tivesse tido filhos, nunca tivesse brigado a socos com alguém, ou não achasse tudo isso possível, como se eu nunca tivesse tido uma infância na Sicília, entre os figos-da-índia e o enxofre das minas, nas montanhas; mas, dentro de mim, eu me agitava com os furores abstratos, e pensava sobre o gênero humano perdido, abaixava a cabeça, e chovia, não dizia uma só palavra aos amigos, e a água me entrava nos sapatos."

(Elio Vittorini; Conversa na Sicília)
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quinta-feira, 18 de setembro de 2008

vietcongue

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Organizando minhas fotos, encontrei esta, da Flip 2004. Eu e o Cardoso, síndico do COL (que faz 100 anos amanhã), cuidando da defesa antiaérea de Haiphong em pleno Vietnã.

O momento foi imortalizado no mirabolante texto cardoseano sobre a referida Flip-Indochina do Sul:

"VIETNAM:

É aquele clássico drink game de FRAT BOY, que consiste em:

1. abrir um BURACO no RODAPÉ de uma latinha de ceva;
2. encaixar o furo na BOCARRA;
3. abrir o anel de cima.

A idéia é beber todo o conteúdo da lata no GUTI – germanicamente conhecido como GUTI-GUTI. As regras são SIMPLES: quem não conseguir, PERDE. Acho que quem CONSEGUIR só DEPOIS do outro, também perde, mas aí já não tenho bem certeza por que não só perdi EU como também perdeu EMILIO: nenhum dos dois concluiu a tarefa com plenitude. Sobrou uma REBA em cada. Merda."
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terça-feira, 16 de setembro de 2008

cada um no seu quadrado

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Mês passado entrevistei alguns quadrinistas sobre o processo criativo de cada um deles. Precisei deixar muita coisa fora do texto, então segue o que cada um disse na íntegra.
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Rafael Grampá: "Meu traço melhora muito das duas às seis da madrugada. Quando chega essa hora, eu já estou trabalhando há muito tempo e minha mão fica levemente adormecida. Eu quase não sinto minha mão tocando o papel, parece que sobra apenas minha mente e o traço, aparecendo sozinho. Acho interessante a sensação que surge logo depois que se tem uma boa idéia. É quase como acertar no bingo, só que melhor. Quando eu era moleque, bem criança, eu era louco pelo Popeye. Desenhava ele o tempo inteiro e acho que ainda consigo encontrar no meu traço influência do E. C. Segar e de outros artistas que desenharam o Popeye. Já adolescente, minha vida mudou depois que eu conheci o Gustave Doré. Hoje em dia me interesso mais em buscar referências narrativas, pois sei que o desenho vai evoluir naturalmente. Uma das minhas principais influências é o cinema, principalmente o do diretor Sergio Leone, que eu admiro pela originalidade da narrativa. Antes, lá fora, brasileiros eram mão de obra barata, tinham espaço apenas nos quadrinhos de linha, de super-heróis. Agora parece que somos esperança de sangue novo. Quando ganhamos o Eisner pela nossa HQ independente 5, ouvimos de figurões e de grandes ídolos que o prêmio não seria importante apenas para nós, mas sim para a indústria em geral. Foi a primeira vez que uma HQ independente ganhou em uma das categorias mais disputadas do Eisner Awards, a de “melhor antologia”, que costuma ser onde os novos artistas surgem. Disseram que isso mostra uma mudança no pensamento da indústria americana de HQs, antes totalmente mainstream e hoje diferente, buscando novo fôlego nos quadrinhos de autor. Quadrinhos ainda é uma arte muito inexplorada, muito jovem, e tem muito o que evoluir. Estamos numa fase muito boa e a quantidade e qualidade dos artistas vem aumentando."
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André Kitagawa: "A questão da narrativa é primordial, me empenho em fazê-la bem. Parte da graça está na maneira como as histórias são contadas. Na origem, sou um desenhista e nesse quesito sempre estou disposto a experimentar, mas sem cair no mero experimentalismo. No Chapa Quente há uma clara variação de estilos e técnicas. O gosto pela temática urbana é uma coisa natural em mim, nunca vislumbrei outro cenário para as minhas histórias. Gosto de alguma sordidez, humor negro, amores platônicos, tédio, losers, situações limite e atitudes inexplicáveis. Minhas histórias geralmente nascem a partir de fragmentos, de pequenas idéias e visões que tento recombinar pra forjar uma narrativa que faça sentido pra mim. Comecei com a pretensão de desenhar super heróis, naquele estilo bem clássico. Mas depois desencanei e fui buscar outras referências. Como quadrinista fui gerado em meio ao boom dos anos 80: Frank Miller, Alan Moore, Angeli, Laerte, revista Animal (com os quadrinhos "adultos" e alternativos da Europa, dos EUA e do Brasil). Fanzineiros da época também me influenciaram: MZK, Alberto Monteiro, Yuri Hermuche. O desenhista que mais gosto é o argentino Muñoz. A capa do disco Goo do Sonic Youth tinha um desenho que eu não cansava de admirar e estudar. Além disso, uma salada de coisas me influenciou. De Scorsese a Vuillemin, de Rubem Fonseca a Fábio Zimbres. Meu jeito de fazer quadrinhos hoje em dia é bem careta até, procuro fazer um roteiro sem falhas (e já errei muito), uma narrativa fluida e envolvente, um desenho expressivo e sempre bem inserido dentro do contexto narrativo. Mas não precisa ser assim, é só a minha opção. Acho que os quadrinhos estão abertos a todo tipo de experimentação, dá pra pirar muito, fazer coisas que, no cinema por exemplo, seriam inviáveis."
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Rafa Coutinho: "Gosto do traço limpo, combinado com uma pintura mais solta. Busco muito uma aproximação com o real, porque gosto do real. E como gosto das narrativas mais fragmentadas e histórias confusas, o mínimo que eu tenho que fazer pelo leitor é o personagem parecer o mesmo de um quadro pro outro. Gosto de terminar de ler uma história com aquela sensação de ter participado de um negócio muito especial, de tomar aquele tapa na cara, essas são as histórias que eu busco quando desenho. Bebo muito no quadrinho de alguns autores que me influenciaram e ainda me influenciam, como Miquelanxo Prado, Jaime Hernandes e o Tayio Matsumoto. Atualmente me apaixonei pelo Cris Blain e o Gippi. No Brasil estão reaparecendo as histórias mais longas, de mais fôlego. O difícil é abrir uma janela no meio dos outros trabalhos. Continua sendo um trabalho mal remunerado, quadrinhos no Brasil. Isso sempre complicou tudo, mas por força divina os autores ainda fazem e cada vez mais. E sim, a trama continua sendo fundamental, meio como cinema ou literatura. As evoluções e experimentações no meio sempre existiram, mas no fim você tem que contar uma história."
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DW: "O pincel é com certeza o instrumento com o qual mais gosto de desenhar. Minhas influências são muitas, o mundo é grande e interessante. No momento estou fascinado pelo John Lennon, pelo Charles Burns, e sempre pelo Cortázar. Acho importante manter o leitor consciente de que a HQ tem características próprias que fazem dela uma linguagem peculiar. Sempre penso que o visual é o mais importante, mas sentar e ler uma boa história torna a experiência completa, mesmo que essas tramas às vezes sejam bastante "abertas" e peçam dedicação para serem absorvidas."
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Daniel Bueno: "Meu estilo nos quadrinhos tem relação direta com o das ilustrações. Os contornos geométricos e sintéticos, o apelo ao grotesco e a ambientes soturnos, o uso de texturas e colagem. Quando elaboro as histórias, estruturo os quadros de modo muito simples, e faço textos diretos e curtos. Em relação aos temas, costumo partir de aspectos do cotidiano que me incomodam para abordar questões existenciais. Meu estilo de ilustração tem influências muito variadas: admiro Grosz, Depero, Steinberg, Jim Flora, Covarrubias. Leio quadrinhos de todo gênero desde pequeno, mas nos últimos anos o que têm me chamado a atenção é a produção alternativa, coisas da velha RAW e das revistas Blab!, Le Dernier Cri, Strapazin, Kramers Ergot. Gosto das experimentações muito encontradas nas histórias curtas. Elas estão frequentemente no limiar do “errado”, e quando acertam chegam a situações novas e inusitadas. Por outro lado, também aprecio HQs longas, de desenho sutil e em harmonia com o roteiro, ambos integrados de modo a contar bem uma história. É o caso dos quadrinhos de Christophe Blain, Art Spiegelman, Hugo Pratt, e outros. No Brasil também temos ótimos contadores de história, como o Laerte, Pavanelli, Mutarelli, Spacca, Kitagawa. Luiz Gê é referência obrigatória, foi um desbravador nos tempos da revista Circo, explorou os recursos de narrativa como ninguém. Chama a atenção o trabalho do Guazzelli, que sabe inserir em HQs longas experimentações de desenho e narrativa, com traço muito refinado. Temos também o Zimbres, que recentemente lançou uma novela gráfica experimental, Música para Antropomorfos, feita a partir das músicas da banda Mechanics. Acredito que o quadrinista deve ser honesto consigo mesmo e fazer aquilo que considera o melhor, sem comprometer seu trabalho em função do mercado ou do gosto mediano...Tem que ter algo a dizer, ir longe em sua proposta, falar de coisas indigestas e desagradar a si mesmo, se for necessário. Coisa que Harvey Pekar, por exemplo, sabia fazer muito bem. Uma narrativa longa requer domínio do conjunto da obra, da estrutura do roteiro, da relação da história com os aspectos gráficos. Saber encontrar o equilíbrio entre o desenho e roteiro é um dos segredos. Existe sempre o risco do quadrinista se perder em devaneios gráficos, cair na redundância e monotonia, errar no ritmo do roteiro, não saber resolver o final. Acho a trama importante, mas quando isso é feito como oposição a outras abordagens mais experimentais, fico preocupado, pois me parece conservadorismo e fruto de incompreensão. O fato é que a HQ permite uma grande variedade de opções, suficientes para abarcar inúmeros caminhos."
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Fabio Lyra: "Faço HQs bobas sobre garotas, com um traço limpo e elegante. É o que dizem. Minhas principais influências são Moebius, Nick Hornby, Jaime Hernandez, Daniel Clowes e o Sergio Leone. Moebius foi importantíssimo para a minha formação. Eu tinha 16 anos e ainda estava naquele mundo de super-heróis, quando caiu em minhas mãos um álbum do cara. Aquilo foi o suficiente para abrir meus horizontes e mostrar que quadrinhos podem ser muito mais do que gente de collant apertadinho. O Nick Hornby é o grande responsável pelo tipo de HQs que eu faço. Quando li o Alta Fidelidade eu não estava satisfeito com os quadrinhos que andava rascunhando, não estava à vontade com eles. Ler o livro do Hornby e ver como ele falava com naturalidade sobre temas contemporâneos e a sinceridade com que ele escrevia foi muito inspirador para mim. Sergio Leone é um gênio, tudo que aprendi sobre narrativa foi assistindo aos westerns que ele fez. Esse tipo de quadrinho autoral, com um pezinho nas graphic novels, ainda não tem uma "escola" no Brasil. Só o desenho não basta, é preciso ter uma história que seja envolvente e que cative o leitor."
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Gabriel Moon e Fábio Bá: "Nós temos traços expressivos e detalhados, e isso é um resultado do tipo de histórias que gostamos, mais intimista, sobre relacionamentos humanos, onde as expressões faciais, os gestos, a linguagem corporal e os detalhes do ambiente são importantes para construir o clima da história. Gostamos de contar histórias de drama humano, usando elementos fantásticos para ressaltar os aspectos mais cotidianos dos relacionamentos entre as pessoas. Queremos criar um registro da época em que vivemos e o modo como as pessoas se relacionam está diretamente ligado aos tempos de hoje. Gostamos de Laerte, Will Eisner, Guimarães Rosa, Neil Gaiman. Queremos ser visto como autores, tanto aqui como lá fora, e nossos esforços internacionais são nesse sentido. É um caminho difícil e longo. Para mim, a premiação do Eisner é uma validação e um reconhecimento desse trabalho de autor, e deve nos ajudar a continuar contando nossas histórias. Acho que essa nova geração não está ligada mais ao humor como acho que a geração anterior estava. Acho que existe uma busca de narrativas mais sérias, mais longas, numa aproximação maior com a literatura e com o cinema do que com a charge e o cartum. Acho que hoje em dia os quadrinhos são "cool", viram filmes, desenhos animados e bonequinhos. Mas esse prestígio vem ligado a uma ignorância, muita gente nem sabe o que está sendo feito em quadrinhos, não lê o que está sendo publicado. Existem coisas que só são possíveis em quadrinhos, pois a HQ tem um ritmo de leitura muito singular, tornando a experiência da leitura muito mais impactante do que a literatura, muito mais intimista, pois é o leitor quem determina o tempo da história, e muito mais maleável do que o cinema, que tem seu ritmo de 24 quadros por segundo. Existe uma poesia na escolha das palavras de uma HQ, e assim também acontece com a escolha das imagem de cada quadrinho, na escolha do que mostrar e do que deixar de fora. Você direciona o olhar do leitor e o mergulha no mundo de uma maneira que só é possível numa história em quadrinhos. Nas HQs, você precisa escolher as palavras e as imagens, e nessa escolha está o estilo do autor, sua voz, sua visão de mundo. O mais difícil numa HQ é saber o que tirar, o que é gordura, e somente deixar o que é essencial."
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domingo, 7 de setembro de 2008

gena é um gênio

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Gena Rowlands, enormíssima.

A woman under the influence, John Cassavetes, 1974
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sexta-feira, 5 de setembro de 2008

receita de panqueca

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Muita gente diz que, perto da realidade, a ficção é panqueca.

Nos anos 60, o Tom Wolfe viu o jornalismo tomando o lugar do romance. "Os romancistas abandonaram o realismo", dizia. "A literatura mais importante escrita hoje na América é de não-ficção." Ele queria que o jornalismo, o Novo Jornalismo (reportagens apuradas com técnicas em geral associadas à literatura), alcançasse o "status" que tinham os romancistas.

Além de só usar ternos brancos e feiosos, ele fazia uma curiosa leitura histórica: chamava a atenção para uma suposta semelhança entre os primeiros dias do romance e os do Novo Jornalismo ("Em ambos vemos surgir um grupo de escritores trabalhando um gênero considerado Classe-Baixa -- o romance antes de 1850 e o jornalismo das revistas populares antes de 1960"), e pintava o realismo como o maior dos gêneros (“O gênio de qualquer escritor estará seriamente comprometido se ele abandonar as técnicas do realismo. Ninguém jamais se comoveu até as lágrimas com Homero, Sófocles ou Shakespeare. Mas todos choram com Charles Dickens.”)

Ou talvez o problema seja comigo. O sonho dos heróis, por exemplo. Não é uma história (de todo) realista, não tem as crianças e o natal do Dickens, mas, puxa, desde que a Julia me deu o livro, há dois anos, estou chorando sem parar. Tem uma noite do carnaval de 1927, uma noite que o protagonista não consegue lembrar e decide tentar repetir passo a passo na intenção de recuperá-la. Perto da busca por essa noite perdida, em que algo extraordinário e revelador aconteceu (ele só não consegue se lembrar o quê -- como quando a gente acorda e perde aquilo que viveu, nos sonhos), perto de coisas assim, a "realidade" é que gruda na frigideira e faz a maior fumaça.

Mas estou sendo injusto com o Tom Wolfe. O Bioy Casares conta, no prólogo da edição argentina do Sonho, que o real esteve ali, o tempo todo: "Es difícil reconstruir con exactitud la génesis de un libro, incluso de uno proprio. Muy en el principio tuvo que haber estado la idea de que la realidad puede ser fantástica en cualquier momento. A veces la vida nos da una visión momentánea de algo que quiebra el orden de la realidad, como si el mundo estuviera hecho de infinitos mundos que de vez en cuando confluyen. (...) La parte fantástica de El sueño de los héroes fue menos lo que me impulsó a escribir que la vida en Buenos Aires, la amistad, la lealtad, todos esos temas que hay en la novela me entusiasmaron más que lo asombroso del argumento. Muchas circunstancias que aparecen en el libro son recuerdos de relatos que se contaban en un restaurante donde se reunían los choferes de taxi, en calle Montevideo, al que de chico me llevaba Joaquín, el portero de casa. Allí se contaban historias en las que trasnochadores de vida rumbosa, después de una noche de farra en algún cabaret, salían en un taxi abierto a dar grandes paseos con mujeres por los bosques de Palermo. Creo que haber escuchado esas historias fue uno de los móviles que me llevó a la novela. Otro fue la ansiedad que sentimos cuando creemos haber perdido algo en un sueño, una experiencia que casi todos hemos tenido. (...) En cuanto a los personajes, traté de darles realidad, que no fueran sólo marionetas para hacer posible el argumento, como había ocurrido en mis libros anteriores."
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segunda-feira, 25 de agosto de 2008

periscópio

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Se os homens vivem na barriga de uma baleia
só podem sentir frio e falar
das manadas periódicas de peixes e de muralhas
escuras como uma boca aberta e sentir muito frio.
Mas se os homens não querem falar sempre da mesma coisa
tratarão de construir um periscópio para saber
como se desordenam as ilhas e o mar
e as demais baleias - se é que tudo isso existe.
E o aparelho há de ser fabricado com as coisas
que temos à mão e então começam os incômodos, por exemplo
se de nossa casa arrancamos uma costela
perderemos para sempre sua amizade
e se o fígado ou as lâminas córneas é capaz de nos matar.
E estou quase acreditando que vivo na barriga de alguma baleia
com minha mulher e Diego e todos os meus avós.

(Antonio Cisneros, "Poema sobre Jonas y los desalienados")
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quarta-feira, 6 de agosto de 2008

tudo vira abóbora

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Edward Hopper, Cape Cod Morning, 1950

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Cindy Sherman, Untitled Film Still #48, 1979

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Joel Sternfeld, McLean, Virginia, 1978
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segunda-feira, 28 de julho de 2008

barômetros, um boné feioso, sinetas

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Escrevi o texto abaixo para a Entrelivros de agosto, uma edição sobre literatura & jornalismo. É que toda vez que eu leio o Flaubert, eu penso que ele é ótimo jornalista (não emite opinião, mas faz com que a reflexão esteja dentro do que é contado). Daí tentei investigar o que há de Flaubert na autora mais legal do new journalism, a Lillian Ross do livro Filme.
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Flaubert está em muitos lugares. Assim que chegou a Paris, no verão de 1959, Vargas Llosa foi a uma livraria do Quartier Latin e lá estava ele. Foi a primeira coisa que fez na cidade: Llosa comprou um exemplar de Madame Bovary e, a madrugada no quarto, foi enfeitiçado por Emma, passeou pelas ruas encardidas de Tostes e conheceu Charles, cuja conversa era “sem relevo como uma calçada e as idéias de todo o mundo nela desfilavam com seu traje comum”. A cidade e os cachorros, que ficaria pronto em 1961, seu primeiro romance, é em grande parte esta madrugada em que, lendo Flaubert, Llosa descobriu que tipo de escritor gostaria de ser. Anos antes, Proust também havia encontrado Flaubert. O autor da Recherche, depois de dizer que não gosta de todos os livros de Flaubert, nem mesmo de seu estilo, não gosta muito de Flaubert, não, claro, quem somos nós para discutir, elogia a forma como o narrador flaubertiano desaparece no objeto de sua descrição, elogia os brancos e silêncios, a capacidade que Flaubert tem de narrar por omissão e, antecipando o fascinante mundo da locomoção em aeroportos, diz que as páginas de Flaubert são uma grande esteira rolante, “em deslocamento contínuo, monótono, morno, indefinido, algo sem precedentes na literatura”. Para Zola, Flaubert era o escritor realista por excelência, modelo a ser seguido e admirado. O Flaubert de Henry James foi principalmente um formalista, aquele que alçou o gênero romance à categoria de arte. Entre os contistas, Maupassant, no prólogo de Pierre et Jean, diz ter aprendido do próprio Flaubert que tudo pode ser bom tema literário (barômetros, um boné feioso, sinetas). Bábel, Hemingway. Todos acreditaram ver Flaubert, gigantesco, planando acima de suas cabeças.

Em 1950, a jornalista Lillian Ross, então com 24 anos, acompanhou as andanças de Ernest Hemingway durante dois dias pela cidade de Nova York. Na época, Hemingway morava em Cuba e estava de passagem rumo a Itália (“Nova York é uma cidade para ficar pouco tempo”). Os dois haviam se conhecido três anos antes, quando Lillian preparava um artigo sobre um ex-policial que havia se tornado toureiro. Em Nova York, Ross ajudou Hemingway a comprar um casaco, foram juntos ao Metropolitan, beberam champagne com Marlene Dietrich e ouviu histórias como a da vez em que o escritor viveu com um urso, ficou bêbado com o bicho e se tornaram bons amigos. O perfil foi publicado nas páginas da The New Yorker e mais tarde virou livro, Portrait of Hemingway. Lillian admirava Hemingway. No posfácio de uma das edições do livro, Ross escreve que foi com ele que aprendeu tudo sobre clareza, simplicidade e a beleza de uma prosa sem adornos. “Foi na sua ficção”, diz, “que aprendi a escrever de maneira factual.”

Em um trecho de “Teoria da narrativa: posições do narrador”, o professor Davi Arrigucci Jr. faz uma breve análise do narrador em Hemingway. Toma como exemplo o relato “Hills like white elephants”, do livro Men without women. O conto, resume Arrigucci, é a história de um homem e uma mulher que chegam a uma pequena estação no vale do Ebro, Espanha, num dia de calor e sem sombra. Pedem duas cervejas e começam uma conversa aparentemente banal, mas que vai se tornando tensa (discordam sobre as colinas brancas da desolada paisagem); revela-se então o conflito do casal em torno de um eventual aborto que a moça vai ou não fazer. Isso tudo de forma alusiva e velada. “O continho se resume nisso”, anota. “Ocorre, porém, que as cenas podem assumir uma dimensão simbólica, aludindo a um universo complexo de relações que se entrevê obliquamente através dos poucos elementos concretos de fato apresentados de modo direto.” Essa formulação pode ser aplicada a muitas das narrativas de Hemingway. “The killers”, por exemplo. Trata-se da história dos matadores que, em um bar, enquanto esperam a chegada do homem que vão assassinar, discutem o cardápio (querem lombo de porco e croquetes de frango, mas o garçom avisa que naquele horário só pode servir bacon e presunto com ovos). Eles aguardam, o homem não chega, então decidem ir embora. Quando é avisado, em seu quarto, que matadores estão no seu encalço, o homem diz que não fugirá, que é inútil. Não sabemos muito a seu respeito, não sabemos porque os assassinos estão atrás dele. Sobre a recusa do homem em escapar, Nick, que está no bar quando os matadores chegam, comenta: “I can’t stand to think about him waiting in the room and knowing he’s going to get it. It’s too damned awful”. E o garçom arremata: “Well, you better not think about it”. Nada é explicado. Tudo fica em suspenso e é construído “com o não-dito, o subentendido, a alusão”.

No verão de 1950, o cineasta John Huston convidou Lillian Ross para ir a Hollywood observá-lo em seu novo trabalho, a filmagem de A glória de um covarde, baseado em The red badge of courage, romance de Stephen Crane, sobre a guerra civil americana. Ross aceitou. Passou um ano e meio na cidade, seguindo todas as etapas de realização do filme, e escreveu aquela que viria a ser a mais importante reportagem sobre uma produção em Hollywood. Publicada inicialmente na The New Yorker, a série de textos logo virou livro, Picture (Filme, no Brasil).

De saída, Lillian percebeu que o que tinha nas mãos era uma espécie de romance, “pelo modo como as personagens podem se desenvolver e pela variedade de relações que há entre elas”. Ross fez do diretor Huston, dos produtores Gottfried Reinhardt e Dore Schary, e do chefão da MGM, Louis B. Mayer, seus personagens.

Picture é a história da conturbada realização de um filme. Mayer não acredita no projeto, diz que A glória de um covarde será um retumbante fracasso. Huston, Schary e Reinhardt apostam no filme. Dessa tensão, nasce grande parte dos episódios. Ross vai gradualmente compondo o pano de fundo (a pressão para que o filme seja um sucesso comercial, a escalação dos atores, os bastidores), as cenas se sucedem, ela jamais emite opiniões e deixa que os fatos e as falas assumam sua “dimensão simbólica” e sejam eloqüentes por si. Era o tipo de coisa que Lillian admirava na prosa de Hemingway: como os elementos concretos são apresentados de modo direto, “o poder mágico nos detalhes factuais”. Depois de mais de cento e dez páginas de livro é que a primeira cena do filme de Huston é rodada. Vamos, pacientemente, seguindo os passos de Ross, que não se apressa a dizer, na própria voz, aquilo que as coisas dirão ou mostrarão por si mesmas.

No livro que escreveu sobre Flaubert, A orgia perpétua, Vargas Llosa diz que passou despercebida pela crítica a relação que existe entre Flaubert e o ramal da narrativa contemporânea em que “a perspectiva primeira do relato não é o mundo interior das idéias e sentimentos, mas o mundo exterior das condutas, os objetos e os lugares”. Llosa sugere que esse tipo de narrativa, “que descreve sem interpretar, que mostra sem julgar, em que o fator visual é preponderante” tem um parentesco irremediável com Flaubert. E, para sermos mais rigorosos, com o que Erich Auerbach chamou de “realismo apartidário, impessoal e objetivo” flaubertiano.

No prefácio de Reporting, Lilian Ross (que de acordo com seu editor na The New Yorker, William Shawn, tinha o dom da invisibilidade) escreveu: “Evite a interpretação, a análise, passar os seus julgamentos dizendo ao leitor o que ele deveria pensar. Restrinja-se ao que pode ser observado e reportado. Chegue o mais perto possível da verdade e deixe o leitor fazer a cabeça por si mesmo. (...) Ter um ponto de vista é outra coisa: o seu ponto de vista deve estar implícito nos fatos que você apresenta”. Llosa diz que alguns críticos atribuem a Hemingway a invenção do narrador invisível e que outros dizem que sua aparição no romance é conseqüência do cinema. “Na verdade, este é o ponto de vista hegemônico em Madame Bovary, e Flaubert foi o primeiro a instrumentalizar certas formas de escrita para torná-lo possível”, escreve. “Flaubert usou o relator invisível para dar autonomia ao narrado, conseguir que o mundo fictício parecesse soberano.”

Ross vai, aos poucos, mostrando como produtores e chefes de estúdio ao proporem alterações que visam atrair público e dar ao filme de Huston uma “história”, acabam por destruí-lo. Em um trecho a ser destacado, o produtor Gottfried Reinhardt diz que A glória de um covarde precisa de uma narração em off. “Sempre sustentei que aquilo que torna o livro notável são os pensamentos e sentimentos do protagonista, e não suas ações. Como eles podem ser dramatizados? John [Huston] achava que seriam inerentes às cenas, na expressão do personagem.” Reinhardt (que dizia que as pessoas ficavam inseguras quando se afastavam de Hollywood — “somos crupiês de um cassino desonesto”) queria que os pensamentos do personagem pudessem ser ouvidos, acreditava que isso daria ao filme uma “história”, faria com que os espectadores gostassem do filme.

Se para o produtor Reinhardt, o filme de Huston pecava pela falta de dicas e comentários, para Adorno, a prosa de Flaubert era carente de reflexão. Em um texto chamado “Posição do narrador no romance contemporâneo”, o filósofo alemão escreve que “o romance tradicional, cuja idéia talvez se encarne de modo mais autêntico em Flaubert, deve ser comparado ao palco italiano do teatro burguês”. Adorno acredita que “um pesado tabu paira sobre a reflexão: ela se torna o pecado capital contra a pureza objetiva”, representada para ele pela prosa flaubertiana.

Vale aqui transcrever o que diz Erich Auerbach, em Mimesis: “No caso de Stendhal e de Balzac, ouvimos com frequência, quase constantemente, aliás, o que o autor pensa acerca das suas personagens e dos acontecimentos; Balzac acompanha algumas vezes as suas narrações com comentários comovidos, ou irônicos, ou morais, ou históricos, ou econômicos. Ouvimos também muito amiúde o que as próprias personagens pensam ou sentem, e isto ocorre freqüentemente de tal maneira que o autor se identifica com a personagem numa situação dada. Estas duas coisas faltam em Flaubert quase inteiramente. A sua opinião sobre os acontecimentos e as personagens não é expressa; e quando as próprias personagens se manifestam, isto nunca ocorre de tal forma que o autor se identifique com a sua opinião, ou com a intenção de levar o leitor a se identificar com ela. Embora ouçamos o autor falar, ele não exprime qualquer opinião e não comenta. Seu papel limita-se a escolher os acontecimentos e a traduzi-los em linguagem, e isto ocorre com a convicção de que qualquer acontecimento, se for possível exprimi-lo limpa e integralmente, interpretaria inteiramente a si próprio e os seres humanos que dele participassem; muito melhor e mais inteiramente do que o poderia fazer qualquer opinião ou juízo que lhe fosse acrescentado. Sobre esta convicção, isto é, sobre a profunda confiança na verdade da linguagem empregada com responsabilidade, honestidade e esmero, repousa a arte de Flaubert.” Auerbach percebe que o que faz Flaubert é trazer a reflexão para dentro do que é narrado, e essa é justamente uma de suas inovações. A objetividade não está em desacordo com a reflexão. No romance flaubertiano, a subjetividade estaria difusa na matéria narrativa, a estrutura torna-se comentário.

Ao jornalismo que pratica Ross, para quem o ponto de vista deveria estar sempre implícito na apresentação dos fatos, é possível aplicar algumas idéias de Auerbach sobre a prosa de Flaubert: não há objetos elevados e baixos; cada objeto contém, na sua peculiaridade, tanto a seriedade quanto a comicidade, tanto a dignidade quanto a baixeza (o que explica as mais diversas reações que suscitou o perfil de Hemingway escrito por Lillian, do amor ao ódio); e, o principal, não é necessária qualquer análise que comente o objeto após sua apresentação, tudo isto surge por si próprio a partir da representação do objeto.

Picture é narrado através do ponto de vista da repórter Lillian. Ela não tem uma perspectiva privilegiada, de quem conhece o desenho geral da ação, isto é, sabe começo, meio e fim da história. Para o crítico e tradutor de Flaubert, Samuel Titan Jr., "há uma paciência profunda, tipicamente flaubertiana, que proíbe toda antecipação de fatos e se prende ao tempo que as coisas levam, na experiência dos personagens, para mostrar o que são". Alguns personagens, por exemplo. Apenas quando surgem diante da repórter é que são caracterizados. No livro, Reinhardt aparece muito antes, mas só quando está com ela, conversando no escritório, apenas no momento em que ele se levanta para endireitar uma gravura, só aí é que a narradora o descreve, na perspectiva da repórter, sob a luz de sua sensação (“um homem barrigudo, com uma grossa juba de cabelos castanhos ondulados; em seu terno de xantungue cor de chocolate, parecia um ursinho de pelúcia”). A intromissão do narrador tampouco se dá nos nomes dos capítulos (“Joguem a velhinha escada abaixo!”, “O que há de errado com a opinião de Mocha?” ou “Flautins para o seu nome, cordas para o meu”), que são tirados diretamente da fala dos personagens. No fim da reportagem/romance de Ross, descobrimos, e apenas lá, no último parágrafo, que Schenck, o grande chefe, sabia de início que o filme de Huston não daria certo, mas deixou que fosse adiante porque aquilo fazia parte da “educação” de Dore, o jovem produtor. “De que outro jeito eu poderia ensinar Dore?”, pergunta Schenck. “Apoiei Dore. Deixei-o fazer o filme. Eu sabia que a melhor maneira de ajudá-lo era deixá-lo cometer um erro. Agora, ele aprenderá mais. Um jovem precisa aprender cometendo erros.”

Este trecho transforma toda a história.

No prefácio de Portrait of Hemingway, Ross conta que certa vez pediu ao escritor uma lista de indicações de leitura. Hemingway mandou a ela uma lista com quatorze livros. Entre eles, em posição privilegiada, estava Madame Bovary.
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quarta-feira, 23 de julho de 2008

mah-SHE-she

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"Today's curiosities are "maxixe" and "jiló." Both plants are thought to originate in Africa and to have been introduced into Brazil at the time of the slave trade. Maxixe (mah-SHE-she) is the prickly one that looks like a projectile of choice for teenage boys. It's actually just like a cucumber on the inside and can be eaten raw. I ate the spikes too since the ones I got weren't overly mature. It is also known as the "West Indian gherkin" and "bur cucumber," but I think the Portuguese name wins the prize for "Best Name to Repeat Over and Over Again in a Sing-Song Voice." What looks like a small, green eggplant is the jiló (gzee-LAW), also known by the less appetizing name of "garden egg." It's kind of like an eggplant, 'cept different, and the rounder ones, like these, are bitter. They are harvested while still unripe because the mature crops become even more bitter (and turn orange). You can sautée them with garlic and other veggies for an interesting mix of bitter and salty."

Este trecho é do post brasileiro do blog da Katrina, Weird Vegetables. Ela estuda em Berkeley, é tradutora (está no Brasil pesquisando as voltinhas de Elizabeth Bishop pelo país) e nos conhecemos durante a Flip. Katrina diz que adora couve e que se pudesse, seria uma cebola. Além de preferir (sabiamente) o agrião a rúcula. A Vanessa mandou pra ela a imagem do Rei Repolhão, que reproduzo abaixo.

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domingo, 20 de julho de 2008

ele nos aborrece, e isso basta

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"Somos cinco amigos, certa vez saímos um atrás do outro de uma casa, logo de início saiu o primeiro e se pôs ao lado do portão da rua, depois saiu o segundo, ou melhor: deslizou leve como uma bolinha de mercúrio, pela porta, e se colocou não muito distante do primeiro, depois o terceiro, em seguida o quarto, depois o quinto. No fim estávamos todos formando uma fila, em pé. As pessoas voltaram a atenção para nós, apontaram-nos e disseram: "os cinco acabam de sair daquela casa". Desde então vivemos juntos; seria uma vida pacífica se um sexto não se imiscuísse sempre. Ele não nos faz nada, mas nos aborrece, e isso basta: por que é que ele se intromete à força onde não querem saber dele? Não o conhecemos e não queremos acolhê-lo. Nós cinco também não nos conhecíamos antes e, se quiserem, ainda agora não nos conhecemos um ao outro; mas o que entre nós cinco é possível e tolerado não o é com o sexto. Além do mais somos cinco e não queremos ser seis. E se é que esse estar junto constante tem algum sentido, para nós cinco não tem, mas agora já estamos reunidos e vamos ficar assim; não queremos, porém, uma nova união justamente com base nas nossas experiências. Mas como é possível tornar tudo isso claro ao sexto? Longas explicações significariam, em nosso círculo, quase uma acolhida, por isso preferimos não explicar nada e não o acolhemos. Por mais que ele torça os lábios, nós o repelimos com o cotovelo; no entanto, por mais que o afastemos, ele volta sempre".

("Comunidade", Kafka)
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domingo, 13 de julho de 2008

a xícara na arte moderna

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Amanda Smith at Vincent Avenue, de Simon Davis,

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Kate, de Vicky White,
na edição 2007 do prêmio.
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terça-feira, 8 de julho de 2008

bustos domecq de nariz escorrendo

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Desde que lançamos O Verão, a Vanessa e eu conversamos com alguns jornalistas sobre o livro e a história da escrita em dupla. Achei que seria legal reunir isso. Seguem abaixo quatro entrevistas que respondemos siameses. A primeira para o Miguel Conde, d'o Globo; a segunda para o Alvaro Costa e Silva, d'o Jornal do Brasil; a terceira para o Guilherme Bryan, da agência BRPress; e a outra para o Bernardo Gutierrez, do jornal Publico, de Madri. Segue também uma, apenas comigo, que vai ser publicada n'O grito.
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1) Como vocês iniciaram essa colaboração? Produziram outras coisas juntos além da novela?
O Emilio tinha um fanzine na internet chamado Givago e a Vanessa escrevia A Hortaliça. Começamos a trocar emails e descobrimos que morávamos no mesmo bairro (o Mandaqui) e fazíamos a mesma faculdade, o que era uma coincidência incrível -- é um bairro tão longe que segue até um fuso horário diferente. Morávamos tão perto que a Vanessa não podia abrir os braços demais, senão esbarrava no banheiro do Emilio. Um dia, escrevemos juntos um conto sobre o sumiço de um vibrafone em uma música. Depois, participamos de uma oficina literária com o Milton Hatoum, na Flip de 2004, e enviamos projetos de romances para concorrer a uma bolsa. Naturalmente não ganhamos porque o livro da Vanessa continha trechos do Manual de refrigeração e ar condicionado (Editora Fulton, 1329 pp.), e o do Emilio tinha como protagonista um isqueiro. Depois de suportar o peso da nossa genialidade incompreendida, tivemos a idéia de fazer um romance que começasse com um tiroteio de balas de goma. Começou assim. A idéia era escrever um livro que falasse da dificuldade de dizer coisas importantes, de se comunicar com o outro e de criar besouros campeões.

2) Que regras, se alguma, vocês adotaram para organizar a escrita? Os trabalhos de Bustos Domecq tinham um tom paródico que, ao estabelecer uma espécie de modelo inicial, contribuía para uma uniformidade da escrita. No caso de vocês, como surgiu a 'voz' da dupla?
Escrevemos O verão em turnos. A Vanessa escrevia um trecho, que podia ser de duas linhas ou de uma ou duas páginas, passava para o Emilio e ele lia, reescrevia e seguia em frente. Foi um processo muito lento, principalmente no início, quando ainda não tínhamos uma voz coesa. Encontramos o tom no decorrer das páginas, quando o nosso narrador (o Menorzinho) decidiu falar com a gente. A partir daí, fomos escrevendo sem rumo, sem discutir o enredo. Fizemos alguns poucos "colóquios" para uniformizar as idéias, mas em geral foi um processo de muita reescrita, de cuidado com o texto. A Vanessa gostava muito quando chegava numa parte difícil de continuar, quando ela mesma colocava os personagens numa situação complicada e aí era só salvar o arquivo e mandar pro Emilio, que ele resolvia. Às vezes dava a sensação de que o livro se escrevia sozinho, porque de repente o Emilio recebia um trecho grande já pronto, como se tivesse ido dormir e as coisas tivessem acontecido na sua ausência.

3) Foi um processo pacífico e ordeiro? Quanto tempo levou?
Começamos a pensar no livro no fim de 2004, mas só iniciamos em janeiro de 2005. Levamos quase 3 anos, até novembro de 2007. Só sentamos para discutir os rumos da história nos últimos capítulos, mas mesmo então nossas visões eram muito parecidas e pensávamos no livro da mesma forma, de modo que só precisamos amarrar algumas pontas e planejar o final apoteótico, em que todos morrem e a rainha é decapitada. Houve algumas brigas e duelos de empurrões, mas em geral cada um ia cedendo e tocando para a frente. No final, foi uma surpresa ver que a história estava lá, que de duas cabeças diferentes surgiram quatro personagens, um besouro e um bando suspeito de homens de galochas.

4) Além da colaboração entre Borges e Bioy Casares, alguma outra serviu de referência para vocês?
A viagem Paris-Marselha que o casal Cortázar-Dunlop reuniu em Os autonautas da cosmopista. Nossa cena preferida é a dos caminhões sinistros, em que Carol e Julio se perguntam o que diabos eles levam em suas carrocerias (alfinetes de gancho, touquinhas para bebês, macarrão a granel). E um livro que a gente não leu, mas saber que ele existiu nos deixa realmente com as botas leves. Trata-se de Através dos campos e das praias, que Flaubert e seu amigo Maxime Du Camp fizeram juntos. O livro, que não foi publicado, teria doze capítulos: a Flaubert cabiam os ímpares e a Du Camp, os pares. Nas Cartas, Flaubert se refere a ele como um "exercício rude", "uma obra de pura fantasia e digressões".

5) Que diferenças vocês descobriram na escrita a quatro mãos?
Escrever em dupla é, de certa forma, não ter medo de se contaminar (a gente nunca sabe quando o lado de lá se mistura com o de cá). A Vanessa tem um humor muito característico, o Emilio reescreve até o olho cair. O importante é que as diferenças, assim como a leitura de outros autores, não sejam motivo de angústia, mas abram novas possibilidades narrativas e de criação. Talvez o Borges tenha alguma razão: somos todo o passado, somos nosso sangue, somos a gente que vimos morrer, os livros, somos gratamente os outros.
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1) Chama a atenção no livro o trabalho com a linguagem. Essa foi uma preocupação desde o início, adequar como se conta ao que está sendo contado?
Assim que pensamos no livro, decidimos que ele seria narrado por uma criança. Era um dia de manhã e trocávamos e-mails sobre escrever uma história que começasse com um tiroteio de balas de goma. Não queríamos fazer um livro de memórias, com um adulto recordando acontecimentos de sua infância. Isso nos pareceu sentimental demais. Ficou claro que só uma criança poderia narrar um tiroteio de balas de goma de forma confiável. Então tentamos recriar a sensibilidade desta criança muito particular que é o nosso narrador (o Menorzinho).

2) Vocês escreviam juntos ou trocavam os textos por e-mail?
Trocamos centenas de emails até O Verão ficar pronto. Cada um escrevia um trecho e passava a batata por email; o outro lia, sapateava e devolvia, com um trecho novo adicionado. Às vezes quase não avançávamos, de tanto que ficávamos obcecados em retrabalhar o trecho do outro. Outras vezes, não mudávamos uma vírgula. Foram poucos os encontros para fazer leituras conjuntas e discutir os rumos da história. Em geral, íamos escrevendo, só, na base da reação – principalmente quando o narrador começou a tomar forma e o ritmo foi ficando mais solto. Foi um desafio porque de repente o enredo ia para um lado completamente inesperado e o outro tinha que resolver, então às vezes parecia que o livro tinha vida própria e o nosso controle era pequeno, como o do narrador Menorzinho diante da história. Foi um bom exercício. O problema é que nós somos dois neuróticos e as vírgulas eram disputadas palmo a palmo, até um de nós jogar a toalha.

3) Voltando à questão da linguagem, nota-se que às vezes aparecem o que se pode chamar de cacos, parênteses e travessões que às vezes justificam ou contradizem os trechos anteriores. É uma característica da escrita a quatro mãos?
É uma característica do narrador do livro. Ele é pequeno, entende as coisas do jeito dele. Tenta organizá-las (do jeito dele) e quase sempre tropeça – ou é esmagado feito ervilha. O livro pode ser lido como um tipo de narrativa de aventura, só que enguiçada. Há crianças, férias, verão. Mas parece que o filme enroscou na máquina, que a bóia de pato furou, que as figurinhas perderam o autocolante. As promessas de aventura não se cumprem. E isso está relacionado a este narrador, à forma como ele enxerga o mundo. Num próximo livro (em dupla ou individual), teremos que buscar outros modos de narrar e contar a história.

4) Além da frase famosa – "Quando duas pessoas escrevem juntos, e não são vaidosas, o resultado é melhor do que quando trabalham separadas" – até que ponto Borges e Bioy Casares foram determinantes na união de Barbara e Fraia?
Pensar que, numa noite de 1936, Bioy e Borges se reuniram numa sala de jantar e começaram a parceria com um texto sobre uma família búlgara e um iogurte é inspirador. A amizade é muito importante. Não nos comparamos a Borges e Bioy, de jeito nenhum. Eles são enormíssimos. Mas temos imensa admiração pelas histórias que criaram.

5) Até que ponto a experiência com fanzines ajudaram ou estão ajudando Barbara e Fraia como escritores?
É legal escrever fanzines porque você faz o que bem entender e ninguém reclama, a não ser os leitores, que são naturalmente ignorados. E dá pra bombardear os amigos com uma edição especial "tolice absoluta" ou "falta do que fazer" na hora que você quiser, para quem você quiser. Dá uma sensação enorme de liberdade e isso passou para o livro, já que fomos escrevendo o Verão como se fosse um jogo, sem saber se a gente ia conseguir terminar e nem se alguém ia querer publicar. A gente não sabia nem se ia fazer sentido. Com o Givago e A Hortaliça, aprendemos a criar as nossas próprias regras: é facultado ao jogador chutar a boca das regras e fazer como quiser. Jogar amarelinha na encosta da colina, por exemplo, e inventar outras normas unicamente para trapaceá-las: se a pedra rola pra direita, uma volta a menos, se pra esquerda, pode-se pular mais longe, e se uma pequena avalanche arrasta tudo, quem chegar primeiro em casa ganha.

6) E a experiência como alunos da oficina da Flip? E como é voltar agora, como convidados da festa?
Em 2004, a Vanessa ficou numa pousada cuja porta do banheiro não fechava, e havia um galo que cacarejava todos os dias às 3 da manhã. Sem falar na televisão do albergue do Emilio, que ficava ligada 24h em um programa sobre o acasalamento de emas. Ou seja, voltar a Flip na condição de convidados foi um avanço surpreendente. Nossa única preocupação na edição deste ano é não pegar soluço durante o debate e nas ruas da cidade olhar sempre pra baixo, para diminuir a média anual de quedas.
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1) Como foi a experiência de escrever um romance a quatro mãos e como vocês se organizaram?
É mais difícil do que parece e mais possível do que se pensa – o que quer que isso signifique. Pensamos em fazer um romance de crianças sobre a impossibilidade de expressar certas coisas, normalmente as mais importantes, uma história que aos poucos caminhasse para um território de pessoas e sentimentos mortos e empalhados. Um dia, começamos. Um de nós escreveu o início e passou pro outro, que reescreveu, ajeitou, matou no peito e devolveu. Assim foi. No início, demoramos para encontrar a voz do narrador, mas depois o processo foi mais rápido e íamos escrevendo sem discutir. Na verdade, chegamos a nos encontrar apenas umas três ou quatro vezes para falar sobre o livro e os rumos da história. Foi um jogo divertido, criar um mundo sem o menor controle (nosso ou dos protagonistas), em que os dias acabavam de repente e aos meses-pó se sucediam os meses-palha, num amontoado de coisas estranhas e suspeitas.

2) Qual foi a importância da participação na oficina literária de Milton Hatoum na Flip 2004 e, em algum momento, passou pela cabeça de vocês serem convidados tão rápido para este que é um dos eventos mais importantes da literatura no Brasil?
Na oficina do Hatoum é que, discutindo sobre as modalidades de romance, pensamos em fazer um romance pistolar (em vez de epistolar) que começasse com um tiroteio de balas de goma. A isso juntamos uma frase do Kafka: "além do mais somos cinco e não queremos ser seis". Nunca achamos que seríamos convidados para a Flip e, pra falar a verdade, temos certeza que vamos pegar soluço durante o debate. E será um soluço tão constrangedor quanto sincronizado: a Vanessa solta um hic, o Emilio continua, bota um hífen, vira hic-hic, e depois hic-hic-hic e será um sucesso.

3) O Verão do Chibo é narrado com a linguagem e a visão de uma criança de 7 anos, que, de certo modo, dá uma grandiosidade aos eventos que nós adultos provavelmente não daríamos. Quais foram as maiores dificuldades de se encontrar o tom certo dessa linguagem?
No começo, o Menorzinho (nosso narrador pequeno e confuso) não ia interferir na história e nem falar quase nada. Mas ele foi se impondo e, aos poucos, tomando conta do registro desse verão, que, afinal, foi bem difícil pra ele – o Chibo e o Bruno desapareceram, o lado de lá se misturou com o de cá e os navios não atracaram, nunca. De certa forma, foi o tom em conjunto que encontramos para escrever a quatro mãos; o narrador reflete esse ruído que são duas pessoas escrevendo por uma só: ele é assustado, confuso, nunca entende nada e interpreta do jeito que ele quer – uma literatura do mal-entendido. É o nosso H. Bustos Domecq de nariz escorrendo.

4) O livro começa com um dos diálogos mais fortes do filme Brinquedo Proibido, de René Clement. Qual foi a importância desse filme para a realização do livro? Também há muitas outras referências cinematográficas no livro. Podem citar algumas?
Quando vimos Brinquedo proibido, já tínhamos avançado um pouco na história. Gostamos do tom e dos meninos que roubam as cruzes do cemitério, da Paulette arrastando o cachorro morto, de tudo. É um filme que se passa durante a guerra, realista, o que pode levar a uma leitura diferente da nossa história, que tem muita imaginação desenfreada. Além disso, no fim do filme há uma homenagem ao nosso colega de Flip, o Laub, quando a menina fica gritando: “Michel, Michel, Michel”. Nós gostamos muito de filmes e botamos até o Rodolfo Valentino na roda. Assistimos muito faroeste (a Vanessa adora o título do livro do Eli Walach: O bom, o mau e eu), muito filme de aventura e muito Hitchcock (em Sabotagem, uma criança morre e, ora, não se devem matar crianças no cinema, diria o nosso narrador). Além disso, Os incompreendidos, Zero de conduta, Zazie no metrô, If e Quando papai saiu em viagem de negócios são outros dos filmes que assistimos na época do Chibo.

5) O Verão do Chibo faz referência a uma série de brincadeiras e travessuras típicas de crianças do interior. Como foi a infância de vocês, nascidos numa cidade tão urbana como São Paulo no início da década de 80? Aliás, como vizinhos, vocês costumavam brincar juntos? Se sim, quais eram as brincadeiras mais comuns e quais narradas no livro vocês gostariam de ter brincado mais?
A gente morou no Mandaqui, que não fica exatamente em São Paulo. Quer dizer: é um bairro da zona norte bem distante do centro, cheio de peculiaridades. Por exemplo: freqüentávamos a lojinha de doces Pé-de-moleque, onde os donos não tinham o menor senso de lucro (faliu em pouco tempo) e davam picolé premiado pra todo mundo – um dia o Emilio ganhou cinco, em sequência. No Mandaqui, as coisas acontecem num tempo diferente e há o seu Firmo Farias, que desde o Descobrimento fala as mesmas coisas para quem espera o ônibus ("Vais passear, Minino?"). É um bairro pitoresco. Na rua, a Vanessa brincava de “Elefantinho Colorido”; o Emilio morava no Bosque de Santana, corria muito no polícia-e-ladrão e sempre roubavam as figurinhas dele – eram eventos muito graves e importantes. Tudo é muito sério até os 12 anos. Quando ainda se tem dentes de leite, o esconde-esconde é a coisa mais assustadora do mundo. Isso sem falar nas cascas de joelho, a infância é cheia delas, e de pais e mães que brigam, e de um passarinho morto que é enterrado atrás do prédio, sem ninguém ver.

6) A escritora campineira Índigo adotou em seu romance, A Maldição da Moleira, o pensamento de um bebê. É possível estabelecer alguma relação com a obra de vocês? Por quê?
A gente não leu este livro, mas não é difícil imaginar que ela se divertiu um bocado entre toucas, sapatinhos, mingau e a vida íntima dos bebês.

7) Também há comparações entre o método adotado por vocês e o de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. É possível realmente estabelecer esse paralelo? Por quê?
Gostamos muito do Bioy e do Borges, do humor irônico, da discrição, de um certo classicismo da dupla (de lugares que criaram, feito a "quase marmórea confeitaria Los Argonautas"), mas eles são gigantes, qualquer comparação é impossível. Algumas das regras que norteavam a colaboração entre os dois acabaram sendo naturalmente adotadas por nós: exigência mútua, direito permanente de veto, prioridade ao jogo e ao prazer. Nos livros que escreveram juntos é impossível dizer o que é de um e o que é de outro. Isso foi algo que buscamos, tentar apagar esses limites e fazer o leitor se concentrar única e exclusivamente no mundo que importa, que é o do Chibo, Cabelo & Cia.
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Como surgiu a idéia?
Nós tínhamos lido uma frase do Kafka, de um conto chamado "Comunidade", e ela dizia que "além do mais somos cinco e não queremos ser seis". Isso foi mais ou menos ao mesmo tempo em que a gente pensou em escrever uma história cujo início fosse num tiroteio de balas de goma. Decidimos então fazer um romance de crianças, e partimos também da idéia de que as coisas mais importantes são sempre as mais difíceis de se expressar. Foi assim: um de nós escreveu o início e passou pro outro, que reescreveu, ajeitou, matou no peito e devolveu. Trocamos centenas de e-mails até o livro ficar pronto. No início, demoramos para encontrar a voz do narrador, mas depois o processo foi mais rápido e íamos escrevendo sem discutir. Na verdade, chegamos a nos encontrar apenas umas três ou quatro vezes para falar sobre o livro e os rumos da trama. O livro foi evoluindo e começou a ser igualmente uma história de morte e barcos que não atracam. Foi um jogo divertido: criar um mundo sem o menor controle (nosso ou dos protagonistas), um mundo em que a imaginação tenta resistir frente a um exército de figuras mortas e empalhadas, em que os dias acabavam de repente e aos meses-pó se sucediam os meses-palha, num amontoado de coisas estranhas e suspeitas.

Alguma experiência inspiradora (Borges-Bioy?)
Gostamos muito do Bioy e do Borges (juntos e separados), do humor irônico, da discrição, de um certo classicismo da dupla. Algumas das regras que norteavam a colaboração entre os dois acabaram sendo naturalmente adotadas por nós: exigência mútua, direito permanente de veto, prioridade ao jogo e ao prazer. Também gostamos da viagem Paris-Marselha que o casal Cortázar-Dunlop reuniu em Os autonautas da cosmopista. E um livro que a gente não leu, mas saber que ele existiu nos deixa realmente com as botas leves (porque Flaubert é o escritor da página perfeita, o "Autor" por excelência, o anti-parceria). Trata-se de Através dos campos e das praias, que ele e seu amigo Maxime Du Camp fizeram juntos. O livro, que não foi publicado, teria doze capítulos: a Flaubert cabiam os ímpares e a Du Camp, os pares. Nas Cartas, o Flaubert se refere a ele como um "exercício rude", "uma obra de pura fantasia e digressões".

Escrever a quatro mãos enriquece a criação?
Do ponto de vista prático, é como ter um editor e revisor embutidos. Há também a idéia de que, a partir do cruzamento de dois mundos, surge um terceiro (o que multiplica as possibilidades criativas e dá um prazer imenso). Mas apesar da coisa da escrita a quatro mãos ser interessante (poucos são os casos de parceria envolvendo ficção), a sensação pra gente é que ela não importa muito. O Verão pode ser lido como sendo de um único autor. A gente queria contar uma história, fazer com que o leitor se concentrasse nela e só. Embora o livro tenha sido escrito em dupla, nossa preocupação mesmo era tentar recriar a sensibilidade deste nosso narrador muito específico, falar sobre este verão. Nesse sentido, a escrita em dupla não poderia chamar a atenção sobre si, queríamos que o leitor se concentrasse única e exclusivamente no mundo que realmente importa, que é o dos nossos personagens, o Chibo, o Cabelo & Cia.

Por que esta fórmula para uma estréia em romance?
Não foi programado. Em 2004, participamos de um concurso literário que premiaria os dois melhores projetos de romance com uma bolsa e um contrato de publicação. O projeto da Vanessa era a história de pessoas numa fila quilométrica e o do Emilio tinha como protagonista um isqueiro. Naturalmente, perdemos. Então decidimos escrever um livro juntos, porque achamos que dessa maneira teríamos um comprometimento e, por isso, seríamos mais disciplinados. Não sabíamos o tamanho da encrenca que é a parceria literária. Cenas e personagens nascem quando um dos dois tira uma soneca, e é preciso tentar entender o outro – o que nem sempre é fácil. Mas fomos aprendendo que escrever em dupla é não ter medo de se contaminar (a gente nunca sabe quando o lado de lá se mistura com o de cá). É importante que as diferenças, assim como a leitura de outros autores, não sejam motivo de angústia, mas abram novos caminhos.

Quais são suas influências?
Flaubert, Cortázar, Borges, Campos de Carvalho, Salinger, Henry James, Poe, Bábel, Kafka, Lewis Carroll, Sterne, Bataille, Cervantes, livros de aventura (Tom Sawyer, A ilha do tesouro, Os meninos da rua Paulo). Para escrever o Verão assistimos a muitos filmes com crianças (Zéro de conduite, Brinquedo proibido, Os incompreendidos, Quando papai saiu em viagem de negócios). Além disso, Hitchcock, Billy Wilder, Fellini, Groucho Marx, faroestes, musicais, O Manual de refrigeração e ar condicionado, Você tem muito o que aprender, Charlie Brown! etc.

Se tivessem que se vincular a algum movimento cultural (geração de novos escritores brasileira)... qual seria?
Fazemos parte de uma corrente literária que se concentra em dois dos grandes temas humanos: palhaços e patos. Por isso, somos violentamente incompreendidos pelos patrícios e não participamos de nenhum movimento cultural, já que essa temática aquático-circense anda em baixa nos trópicos.

Existem elementos comuns na literatura contemporânea brasileira ou é tudo etiqueta?
Há muitos escritores não-calvos. O que a gente percebe também é que hoje temos à disposição boas traduções, o que não era comum há algumas décadas, e existe a internet. Talvez uma certa retórica da denúncia (social, política, ética, artística) esteja um bocado gasta, embora ainda muito presente. Há os escritores com soluço, os magros. Uma outra categoria é a dos escritores que a gente gosta, aqueles que muito polidamente permitem que o leitor, segundo sua inteligência, convicções e experiências, relacione ficção e realidade, o imaginário e o vivido.

A literatura dos anti-heróis (de Machado a Fonseca) ainda está presente?
A literatura dos pobre-diabos também. Mas há um ramo, mais interessante e atual, que é a literatura dos que desejam fugir.

Por que o conto tem certa força na literatura brasileira?
A crônica tem muita força na literatura brasileira, ou seja, pequenos contos com um pé na realidade e outro na falta do que escrever. Nós gostamos desses autores, como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Luis Fernando Verissimo, mas não sabemos por que eles têm força.

Vivemos uma época de pontes de gêneros (contos, romances, jornalismo, cinema)?
A mistura de gêneros define um ramo muito interessante da literatura moderna. Um exemplo é o Austerlitz, do W.G. Sebald, que coloca para dançar autobiografia, ficção, história. Há algo dessas combinações n'O verão do Chibo também. Nossos personagens são crianças, o que nos permitiu brincar com certos gêneros que têm a ver com esse universo. O romance de aventura (Stevenson, Mark Twain), por exemplo -- o Verão pode ser lido como um tipo de narrativa de aventura (há crianças, férias, verão), só que enguiçada, uma história em que as promessas de aventura não se cumprem. Ou o imaginário de contos policiais e de espionagem que cerca as brincadeiras dos meninos do livro. Também somos muito influenciados pelo cinema: o livro está cheio de momentos faroeste, cinema mudo ou desenho animado. Além disso, gostamos muito de um tipo de escrita clara, direta, substantiva, muito comum no jornalismo literário (Joseph Mitchell, Gay Talese, Lillian Ross, George Orwell, Ernest Hemingway) e temos uma pilha de quadrinhos (Will Eisner, Peter Kuper, Charles Schulz, os gibis do Tio Patinhas).
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1) Como foi na Flip? Incomoda o glamour e os holofotes que geralmente cercam as festas literárias e desvirtuam o debate sobre a literatura em si?
Em 2004, eu fiquei num albergue cuja televisão (coletiva) ficava 24h ligada em um programa sobre o acasalamento de emas. Ou seja, voltar a Flip na condição de convidado foi um avanço supreendente. Se esperarmos "literatura em si" encontros literários podem ser angustiantes. Mas essa é justamente uma das razões que me fazem amar a Flip (além de Parati ser uma cidade muito charmosa). O Bioy Casares dizia que a vida é uma coisa, a literatura é outra. Embora a frase seja meio tola (a literatura nasce de vivências muito íntimas e guarda vínculos imensos com a história e o real), ela cai muito bem para eventos literários. É ótimo ver os autores de perto, escutá-los, vê-los falando, gesticulando. Mas a literatura está nos livros. Parece óbvio, mas saber disso nos deixa muito livres pra poder curtir a festa, encontrar os amigos e tropeçar sem limites pelas pedras

2) Escrever a quatro mãos multiplica a "polifonia" do texto, ou subtrai a solidão e as incertezas da escrita?
O Henry James tem um conto, "Os amigos dos amigos", em que um homem e uma mulher nunca se encontram. Os amigos tentam apresentá-los, mas tudo falha. Quando um entra, o outro sai. Escrever em dupla é mais ou menos assim. Cenas e personagens nascem quando um dos dois tira uma soneca, e é preciso tentar entender o outro – o que nem sempre é fácil. Encontramos o tom no decorrer das páginas, quando o nosso narrador (o caçula da história) decidiu falar com a gente. A partir daí, fomos escrevendo sem rumo, sem discutir o enredo – e fazíamos sempre por e-mail, sozinhos, sem saber no que aquilo ia dar. Em uma das cartas, o Flaubert escreveu: "nosso coração não serve senão para sentir o coração alheio". Embora o livro tenha sido escrito em dupla, nossa preocupação mesmo era tentar recriar a sensibilidade deste nosso narrador muito específico. Acho divertido tentar encontrar, a partir de certos procedimentos de composição, um estilo que possa combinar com um narrador. Não tenho a menor vontade, por exemplo, de ter um estilo tão particular que não me permita fazer isso. Cada história pede um jeito de narrar. Nesse sentido, a escrita em dupla não poderia chamar a atenção sobre si, queríamos que o leitor se concentrasse única e exclusivamente no mundo que importa, que é o dos nossos personagens, o Chibo, Cabelo & Cia.

3) Que autores (livros) põe em sua prateleira mais acessível?
Os contos do Onetti; o Gordon Pym, do Poe; todo Flaubert; Os filhotes, do Vargas Llosa; Palmeiras selvagens, do Faulkner, que eu li na praia; o Cortázar, que escreve bonito; Salinger; Bioy Casares; o Robinson Crusoé; a Ilha do tesouro; os poemas do Drummond; a Carmen, do Mérimée; as histórias do Calvin e do Haroldo; a revista Mad; um site que ensina construir casas na árvore; e o impressionante Você tem muito o que aprender, Charlie Brown!

4) Resolva este nó: o novo escritor não se faz ler pelos seus leitores, ou são os leitores que não os lêem?
Um livro só existe quando é lido. E a literatura são sempre modos de ler (o Roberto Schwarz, que é um leitor e tanto, mostrou isso na abertura da Flip, quando falou sobre como as formas de ler o Dom Casmurro mudaram com o passar do tempo). Todos querem ser lidos, claro. Quando se lança um livro há as entrevistas, as resenhas. Se as pessoas gostam, elas comentam com as outras. Não dá pra fazer muito mais do que isso. E acho que está bom.

5) O Verão do Chibo tem uma história intrigante: um garoto que, entretido em brincadeiras, percebe o sumiço de todos ao redor. A metáfora tem alguma ligação com o cotidiano? Como nasceu o argumento do enredo?
A gente pensou em fazer uma história que começasse com um tiroteio de balas de goma. Daí achamos que só uma criança poderia narrar (de forma confiável) um tiroteio de balas de goma. Partimos também de uma idéia de que as coisas mais importantes são sempre as mais difíceis de se expressar. O livro foi evoluindo e começou a ser igualmente uma história de morte, de barcos que não atracam, a história de um mundo em que a imaginação tenta resistir frente a um exército de sentimentos mortos e empalhados.
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