terça-feira, 16 de setembro de 2008

cada um no seu quadrado

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Mês passado entrevistei alguns quadrinistas sobre o processo criativo de cada um deles. Precisei deixar muita coisa fora do texto, então segue o que cada um disse na íntegra.
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Rafael Grampá: "Meu traço melhora muito das duas às seis da madrugada. Quando chega essa hora, eu já estou trabalhando há muito tempo e minha mão fica levemente adormecida. Eu quase não sinto minha mão tocando o papel, parece que sobra apenas minha mente e o traço, aparecendo sozinho. Acho interessante a sensação que surge logo depois que se tem uma boa idéia. É quase como acertar no bingo, só que melhor. Quando eu era moleque, bem criança, eu era louco pelo Popeye. Desenhava ele o tempo inteiro e acho que ainda consigo encontrar no meu traço influência do E. C. Segar e de outros artistas que desenharam o Popeye. Já adolescente, minha vida mudou depois que eu conheci o Gustave Doré. Hoje em dia me interesso mais em buscar referências narrativas, pois sei que o desenho vai evoluir naturalmente. Uma das minhas principais influências é o cinema, principalmente o do diretor Sergio Leone, que eu admiro pela originalidade da narrativa. Antes, lá fora, brasileiros eram mão de obra barata, tinham espaço apenas nos quadrinhos de linha, de super-heróis. Agora parece que somos esperança de sangue novo. Quando ganhamos o Eisner pela nossa HQ independente 5, ouvimos de figurões e de grandes ídolos que o prêmio não seria importante apenas para nós, mas sim para a indústria em geral. Foi a primeira vez que uma HQ independente ganhou em uma das categorias mais disputadas do Eisner Awards, a de “melhor antologia”, que costuma ser onde os novos artistas surgem. Disseram que isso mostra uma mudança no pensamento da indústria americana de HQs, antes totalmente mainstream e hoje diferente, buscando novo fôlego nos quadrinhos de autor. Quadrinhos ainda é uma arte muito inexplorada, muito jovem, e tem muito o que evoluir. Estamos numa fase muito boa e a quantidade e qualidade dos artistas vem aumentando."
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André Kitagawa: "A questão da narrativa é primordial, me empenho em fazê-la bem. Parte da graça está na maneira como as histórias são contadas. Na origem, sou um desenhista e nesse quesito sempre estou disposto a experimentar, mas sem cair no mero experimentalismo. No Chapa Quente há uma clara variação de estilos e técnicas. O gosto pela temática urbana é uma coisa natural em mim, nunca vislumbrei outro cenário para as minhas histórias. Gosto de alguma sordidez, humor negro, amores platônicos, tédio, losers, situações limite e atitudes inexplicáveis. Minhas histórias geralmente nascem a partir de fragmentos, de pequenas idéias e visões que tento recombinar pra forjar uma narrativa que faça sentido pra mim. Comecei com a pretensão de desenhar super heróis, naquele estilo bem clássico. Mas depois desencanei e fui buscar outras referências. Como quadrinista fui gerado em meio ao boom dos anos 80: Frank Miller, Alan Moore, Angeli, Laerte, revista Animal (com os quadrinhos "adultos" e alternativos da Europa, dos EUA e do Brasil). Fanzineiros da época também me influenciaram: MZK, Alberto Monteiro, Yuri Hermuche. O desenhista que mais gosto é o argentino Muñoz. A capa do disco Goo do Sonic Youth tinha um desenho que eu não cansava de admirar e estudar. Além disso, uma salada de coisas me influenciou. De Scorsese a Vuillemin, de Rubem Fonseca a Fábio Zimbres. Meu jeito de fazer quadrinhos hoje em dia é bem careta até, procuro fazer um roteiro sem falhas (e já errei muito), uma narrativa fluida e envolvente, um desenho expressivo e sempre bem inserido dentro do contexto narrativo. Mas não precisa ser assim, é só a minha opção. Acho que os quadrinhos estão abertos a todo tipo de experimentação, dá pra pirar muito, fazer coisas que, no cinema por exemplo, seriam inviáveis."
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Rafa Coutinho: "Gosto do traço limpo, combinado com uma pintura mais solta. Busco muito uma aproximação com o real, porque gosto do real. E como gosto das narrativas mais fragmentadas e histórias confusas, o mínimo que eu tenho que fazer pelo leitor é o personagem parecer o mesmo de um quadro pro outro. Gosto de terminar de ler uma história com aquela sensação de ter participado de um negócio muito especial, de tomar aquele tapa na cara, essas são as histórias que eu busco quando desenho. Bebo muito no quadrinho de alguns autores que me influenciaram e ainda me influenciam, como Miquelanxo Prado, Jaime Hernandes e o Tayio Matsumoto. Atualmente me apaixonei pelo Cris Blain e o Gippi. No Brasil estão reaparecendo as histórias mais longas, de mais fôlego. O difícil é abrir uma janela no meio dos outros trabalhos. Continua sendo um trabalho mal remunerado, quadrinhos no Brasil. Isso sempre complicou tudo, mas por força divina os autores ainda fazem e cada vez mais. E sim, a trama continua sendo fundamental, meio como cinema ou literatura. As evoluções e experimentações no meio sempre existiram, mas no fim você tem que contar uma história."
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DW: "O pincel é com certeza o instrumento com o qual mais gosto de desenhar. Minhas influências são muitas, o mundo é grande e interessante. No momento estou fascinado pelo John Lennon, pelo Charles Burns, e sempre pelo Cortázar. Acho importante manter o leitor consciente de que a HQ tem características próprias que fazem dela uma linguagem peculiar. Sempre penso que o visual é o mais importante, mas sentar e ler uma boa história torna a experiência completa, mesmo que essas tramas às vezes sejam bastante "abertas" e peçam dedicação para serem absorvidas."
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Daniel Bueno: "Meu estilo nos quadrinhos tem relação direta com o das ilustrações. Os contornos geométricos e sintéticos, o apelo ao grotesco e a ambientes soturnos, o uso de texturas e colagem. Quando elaboro as histórias, estruturo os quadros de modo muito simples, e faço textos diretos e curtos. Em relação aos temas, costumo partir de aspectos do cotidiano que me incomodam para abordar questões existenciais. Meu estilo de ilustração tem influências muito variadas: admiro Grosz, Depero, Steinberg, Jim Flora, Covarrubias. Leio quadrinhos de todo gênero desde pequeno, mas nos últimos anos o que têm me chamado a atenção é a produção alternativa, coisas da velha RAW e das revistas Blab!, Le Dernier Cri, Strapazin, Kramers Ergot. Gosto das experimentações muito encontradas nas histórias curtas. Elas estão frequentemente no limiar do “errado”, e quando acertam chegam a situações novas e inusitadas. Por outro lado, também aprecio HQs longas, de desenho sutil e em harmonia com o roteiro, ambos integrados de modo a contar bem uma história. É o caso dos quadrinhos de Christophe Blain, Art Spiegelman, Hugo Pratt, e outros. No Brasil também temos ótimos contadores de história, como o Laerte, Pavanelli, Mutarelli, Spacca, Kitagawa. Luiz Gê é referência obrigatória, foi um desbravador nos tempos da revista Circo, explorou os recursos de narrativa como ninguém. Chama a atenção o trabalho do Guazzelli, que sabe inserir em HQs longas experimentações de desenho e narrativa, com traço muito refinado. Temos também o Zimbres, que recentemente lançou uma novela gráfica experimental, Música para Antropomorfos, feita a partir das músicas da banda Mechanics. Acredito que o quadrinista deve ser honesto consigo mesmo e fazer aquilo que considera o melhor, sem comprometer seu trabalho em função do mercado ou do gosto mediano...Tem que ter algo a dizer, ir longe em sua proposta, falar de coisas indigestas e desagradar a si mesmo, se for necessário. Coisa que Harvey Pekar, por exemplo, sabia fazer muito bem. Uma narrativa longa requer domínio do conjunto da obra, da estrutura do roteiro, da relação da história com os aspectos gráficos. Saber encontrar o equilíbrio entre o desenho e roteiro é um dos segredos. Existe sempre o risco do quadrinista se perder em devaneios gráficos, cair na redundância e monotonia, errar no ritmo do roteiro, não saber resolver o final. Acho a trama importante, mas quando isso é feito como oposição a outras abordagens mais experimentais, fico preocupado, pois me parece conservadorismo e fruto de incompreensão. O fato é que a HQ permite uma grande variedade de opções, suficientes para abarcar inúmeros caminhos."
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Fabio Lyra: "Faço HQs bobas sobre garotas, com um traço limpo e elegante. É o que dizem. Minhas principais influências são Moebius, Nick Hornby, Jaime Hernandez, Daniel Clowes e o Sergio Leone. Moebius foi importantíssimo para a minha formação. Eu tinha 16 anos e ainda estava naquele mundo de super-heróis, quando caiu em minhas mãos um álbum do cara. Aquilo foi o suficiente para abrir meus horizontes e mostrar que quadrinhos podem ser muito mais do que gente de collant apertadinho. O Nick Hornby é o grande responsável pelo tipo de HQs que eu faço. Quando li o Alta Fidelidade eu não estava satisfeito com os quadrinhos que andava rascunhando, não estava à vontade com eles. Ler o livro do Hornby e ver como ele falava com naturalidade sobre temas contemporâneos e a sinceridade com que ele escrevia foi muito inspirador para mim. Sergio Leone é um gênio, tudo que aprendi sobre narrativa foi assistindo aos westerns que ele fez. Esse tipo de quadrinho autoral, com um pezinho nas graphic novels, ainda não tem uma "escola" no Brasil. Só o desenho não basta, é preciso ter uma história que seja envolvente e que cative o leitor."
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Gabriel Moon e Fábio Bá: "Nós temos traços expressivos e detalhados, e isso é um resultado do tipo de histórias que gostamos, mais intimista, sobre relacionamentos humanos, onde as expressões faciais, os gestos, a linguagem corporal e os detalhes do ambiente são importantes para construir o clima da história. Gostamos de contar histórias de drama humano, usando elementos fantásticos para ressaltar os aspectos mais cotidianos dos relacionamentos entre as pessoas. Queremos criar um registro da época em que vivemos e o modo como as pessoas se relacionam está diretamente ligado aos tempos de hoje. Gostamos de Laerte, Will Eisner, Guimarães Rosa, Neil Gaiman. Queremos ser visto como autores, tanto aqui como lá fora, e nossos esforços internacionais são nesse sentido. É um caminho difícil e longo. Para mim, a premiação do Eisner é uma validação e um reconhecimento desse trabalho de autor, e deve nos ajudar a continuar contando nossas histórias. Acho que essa nova geração não está ligada mais ao humor como acho que a geração anterior estava. Acho que existe uma busca de narrativas mais sérias, mais longas, numa aproximação maior com a literatura e com o cinema do que com a charge e o cartum. Acho que hoje em dia os quadrinhos são "cool", viram filmes, desenhos animados e bonequinhos. Mas esse prestígio vem ligado a uma ignorância, muita gente nem sabe o que está sendo feito em quadrinhos, não lê o que está sendo publicado. Existem coisas que só são possíveis em quadrinhos, pois a HQ tem um ritmo de leitura muito singular, tornando a experiência da leitura muito mais impactante do que a literatura, muito mais intimista, pois é o leitor quem determina o tempo da história, e muito mais maleável do que o cinema, que tem seu ritmo de 24 quadros por segundo. Existe uma poesia na escolha das palavras de uma HQ, e assim também acontece com a escolha das imagem de cada quadrinho, na escolha do que mostrar e do que deixar de fora. Você direciona o olhar do leitor e o mergulha no mundo de uma maneira que só é possível numa história em quadrinhos. Nas HQs, você precisa escolher as palavras e as imagens, e nessa escolha está o estilo do autor, sua voz, sua visão de mundo. O mais difícil numa HQ é saber o que tirar, o que é gordura, e somente deixar o que é essencial."
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