quinta-feira, 30 de outubro de 2008

para tornar uma viagem de táxi mais animada

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13 de maio

Antes que eu me esqueça: a história das calcinhas de Britt Ekland. Mais ou menos um ano atrás, quando cheguei ao meu escritório no National Theatre, tirei um livro do bolso do meu sobretudo e com ele veio junto uma calcinha de Kathleen. Ela caiu no chão, bem diante dos olhos de Rozina, [secretária de Tynan]. Só por malícia, e pela vontade de testar a velocidade e a durabilidade de uma fofoca, decidi inventar uma história sobre a maneira como aquela calcinha tinha ido parar no meu bolso. (A verdade é que, para tornar uma viagem de táxi mais animada, eu tinha pedido a K. para tirá-la, em pagamento de uma aposta. Depois, esquecera que estava no meu bolso.) Contei a Rozina — o que era verdade — que, na noite anterior, eu tinha ido à festa de aniversário de casamento da princesa Margaret e Tony. A rainha, o príncipe Philip e a rainha-mãe também estavam presentes. E então começava a mentira. Contei que tinha percebido que a rainha-mãe tomava copos e mais copos de um líquido claro, tirado de um frasco. “Gim, é claro”, observei para Britt. “Evidente que não”, respondeu ela. “Deve ser água.” “Pois aposto”, disse eu, “a sua calcinha contra dois lugares na primeira fila de Oh, Calcutá! que é gim.” “Está apostado”, disse ela. Então chamei um garçom de libré, dei-lhe uma gorjeta de dez shillings e fiz a pergunta. “Gim Gordon’s, senhor”, foi a resposta. Ao que Britt se retirou para o banheiro, voltou e me entregou a sua calcinha. Três dias mais tarde, fui abordado por um colunista de mexericos num clube noturno. “É verdade a sua história com a calcinha de Britt Ekland?”, perguntou ele. “Melhor perguntar a ela”, respondi. No dia seguinte, a história toda apareceu, contada por ele, no Daily Mirror. No mesmo ano, Britt vendeu a história da sua vida à revista People, que dedicou quase um número inteiro a perpetuar o mito que criei.

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12 de abril

A coisa mais inesperada que já ouvi dizerem, depois de um jantar, em meados dos anos 50. O dono da casa pediu aos convidados, despretensiosamente, que indicassem as três coisas de que mais gostavam no mundo. As respostas variaram entre o sério, o previsível (“os quartetos de Schubert”) e o previsivelmente leviano (“abotoaduras de ônix”), até Kitty Freud sacudir os cabelos escuros e declarar, com uma franqueza trêmula: “Viajar, boa comida e ser espancada no traseiro com uma escova de cabelo”.

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16 de abril

O maior acontecimento cultural da primeira parte da minha vida foi Cidadão Kane. Acreditando em tudo que eu lia (e que Welles dizia) sobre o filme, achava que fosse a obra de um homem só, concebido, produzido, escrito, dirigido e, predominantemente, estrelado por Orson. Essa idéia de uma obra de arte como um desempenho de solista afetou todas as minhas atitudes a respeito do teatro, do cinema e da minha própria carreira por muitos e muitos anos. Só fui encarar de frente a idéia da arte como colaboração muito tempo depois. Agora, os artigos de Pauline Kael sobre Cidadão Kane na New Yorker provam, sem dúvida, que Welles não escreveu qualquer das falas de Kane, e que a idéia e a sua execução (até o estágio de roteiro final, pronto para ser filmado) foram obra exclusiva de Herman J. Mankiewicz. Fiquei encantado, claro, com essa confirmação da minha convicção de que um filme é tanto (se não mais) obra do escritor quanto do diretor. Mas é um abalo profundo descobrir que uma parte tão importante da minha definição anterior de arte se baseava numa mentira.

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27 de maio

Voando para Nova York, para fazer pesquisas para o meu artigo sobre Wilhelm Reich para a New Yorker, comprei e li o último volume dos diários de Cecil Beaton. Como ele tem a sorte — neste único sentido — de ser veado e solteiro, é obrigado a usar o diário como receptáculo para a sua vida exterior e os seus pensamentos interiores. No casamento, os parceiros compartilham a vida exterior, que assim acaba sem registro, e extravasam a sua vida interior um para o outro, e para o provável esquecimento. Ainda assim (e escrevo isso em plena travessia do Atlântico), eu não trocaria Kathleen pela autoria de nenhuma obra-prima.

(Dos fabulosos diários de Kenneth Tynan. Mais aqui)
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quarta-feira, 15 de outubro de 2008

meu pai, 1965

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Minha amiga Flora, que é artista plástica, me mandou a foto abaixo, parte de um trabalho que ela vai inscrever em um programa de residência na França. Ela pediu para que diferentes pessoas escrevessem textos a respeito da obra, só a partir de fotos, sem saber NADA mais.

Minha contribuição, abaixo.
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Contato imediato, 2008

Em 30 de janeiro de 1978, Michigan foi devastada por uma grande nevasca e Stanley A. Perkins perdeu seu chapéu. O mundo nunca mais foi o mesmo. Além do mais as pessoas são feitas de cabeça, tronco e coisas -- as coisas se misturam às pessoas, as pessoas se misturam às coisas. O chapéu era um pedaço vivo de Stanley (Stanley era um pedaço morto do chapéu).

Depois do almoço, Flora e eu saímos para fotografar a obra. Era a nossa primeira vez em Lyon. Os três obstáculos de cimento estavam lá, como havíamos visto pela manhã. Ela olhou o relógio. Estava quase na hora de a quarta pedra pousar. Porque o mundo está lotado de objetos, mais ou menos interessantes, disse Douglas Huebler. Alguns somem, outros aparecem. O chapéu de Stanley A. Perkins, por exemplo, voltou para o seu planeta. Os hidrantes e os telefones públicos também, começam a tomar o caminho de volta. Flora posiciona a máquina: se forçar a vista, dá pra ver o granulado das naves de cimento. Quando dispara, a foto tem um som metálico. Meu pai esteve na cidade, em 1965. Na época, Lyon não tinha obstáculos para proibir os carros de estacionarem. Penso que essa foto era impossível; a imagem que a Flora me mostra no visor da câmera não existia, só passou a fazer parte do mundo agora, quando o último dos quatro objetos pousou no asfalto de Lyon. Um quinto objeto seria redundante, a Flora me diz. O artista não poderia criar um quinto objeto, só pode aceitá-lo e, quando muito, registrá-lo. As pessoas podem tropeçar nos objetos (um degrau sobressalente na escada, por exemplo). O artista deve ouvir em silêncio, ela me diz, registrar; ninguém nunca tropeçou numa foto. Mostro a foto para o meu pai. Quando ele esteve na cidade, em 1965 (ele dirigia um Volks), Lyon não tinha os quatro robôs de cimento. Ele me diz que não reconhece Lyon na foto (e comenta que há manchas no chão). Digo a ele que é uma obra de arte, em Lyon. Corrijo: é a foto de uma obra de arte, em Lyon. Ele sai da sala e volta com uma foto da cour d'honneur do Palais Royal de Paris. As colunas de mármore, onde as crianças brincam. O escritor polonês Witold Gombrowicz, em 1947, em um convescote em Buenos Aires, disse que não existe nenhum elemento específico capaz de definir um texto como poético. A noção de função poética da linguagem, criada por Jakobson (uma função específica que se manifestaria na atividade poética e que implica em certa distância com relação ao uso normalizado da linguagem), essa noção nunca existiu. Nenhum elemento na linguagem possibilitaria essa função poética.

Meu pai volta à foto de Lyon, os quatro alienígenas de cimento, no asfalto. Agora diz que, pensando bem, é uma obra de arte. A disposição para ler poeticamente é o que constitui um texto como poético? O significado da foto que a Flora tirou em Lyon seria fruto de uma disposição -- e não de uma essência, como queria Jakobson. E de um contexto. Se os obstáculos de cimento tivessem pousado sobre a catedral de Notre Dame (para continuarmos na França), o significado seria outro? Num texto de 1952 sobre a metáfora, Borges escreveu: "Sempre desconfiei que a distinção radical entre poesia e prosa está na expectativa diferente daquele que lê." Tudo se move, e o chapéu de Stanley A. Perkins ainda não foi encontrado.
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