quarta-feira, 15 de outubro de 2008

meu pai, 1965

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Minha amiga Flora, que é artista plástica, me mandou a foto abaixo, parte de um trabalho que ela vai inscrever em um programa de residência na França. Ela pediu para que diferentes pessoas escrevessem textos a respeito da obra, só a partir de fotos, sem saber NADA mais.

Minha contribuição, abaixo.
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Contato imediato, 2008

Em 30 de janeiro de 1978, Michigan foi devastada por uma grande nevasca e Stanley A. Perkins perdeu seu chapéu. O mundo nunca mais foi o mesmo. Além do mais as pessoas são feitas de cabeça, tronco e coisas -- as coisas se misturam às pessoas, as pessoas se misturam às coisas. O chapéu era um pedaço vivo de Stanley (Stanley era um pedaço morto do chapéu).

Depois do almoço, Flora e eu saímos para fotografar a obra. Era a nossa primeira vez em Lyon. Os três obstáculos de cimento estavam lá, como havíamos visto pela manhã. Ela olhou o relógio. Estava quase na hora de a quarta pedra pousar. Porque o mundo está lotado de objetos, mais ou menos interessantes, disse Douglas Huebler. Alguns somem, outros aparecem. O chapéu de Stanley A. Perkins, por exemplo, voltou para o seu planeta. Os hidrantes e os telefones públicos também, começam a tomar o caminho de volta. Flora posiciona a máquina: se forçar a vista, dá pra ver o granulado das naves de cimento. Quando dispara, a foto tem um som metálico. Meu pai esteve na cidade, em 1965. Na época, Lyon não tinha obstáculos para proibir os carros de estacionarem. Penso que essa foto era impossível; a imagem que a Flora me mostra no visor da câmera não existia, só passou a fazer parte do mundo agora, quando o último dos quatro objetos pousou no asfalto de Lyon. Um quinto objeto seria redundante, a Flora me diz. O artista não poderia criar um quinto objeto, só pode aceitá-lo e, quando muito, registrá-lo. As pessoas podem tropeçar nos objetos (um degrau sobressalente na escada, por exemplo). O artista deve ouvir em silêncio, ela me diz, registrar; ninguém nunca tropeçou numa foto. Mostro a foto para o meu pai. Quando ele esteve na cidade, em 1965 (ele dirigia um Volks), Lyon não tinha os quatro robôs de cimento. Ele me diz que não reconhece Lyon na foto (e comenta que há manchas no chão). Digo a ele que é uma obra de arte, em Lyon. Corrijo: é a foto de uma obra de arte, em Lyon. Ele sai da sala e volta com uma foto da cour d'honneur do Palais Royal de Paris. As colunas de mármore, onde as crianças brincam. O escritor polonês Witold Gombrowicz, em 1947, em um convescote em Buenos Aires, disse que não existe nenhum elemento específico capaz de definir um texto como poético. A noção de função poética da linguagem, criada por Jakobson (uma função específica que se manifestaria na atividade poética e que implica em certa distância com relação ao uso normalizado da linguagem), essa noção nunca existiu. Nenhum elemento na linguagem possibilitaria essa função poética.

Meu pai volta à foto de Lyon, os quatro alienígenas de cimento, no asfalto. Agora diz que, pensando bem, é uma obra de arte. A disposição para ler poeticamente é o que constitui um texto como poético? O significado da foto que a Flora tirou em Lyon seria fruto de uma disposição -- e não de uma essência, como queria Jakobson. E de um contexto. Se os obstáculos de cimento tivessem pousado sobre a catedral de Notre Dame (para continuarmos na França), o significado seria outro? Num texto de 1952 sobre a metáfora, Borges escreveu: "Sempre desconfiei que a distinção radical entre poesia e prosa está na expectativa diferente daquele que lê." Tudo se move, e o chapéu de Stanley A. Perkins ainda não foi encontrado.
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