domingo, 12 de julho de 2009

o amigo da família renana

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Foi o Samuel (Titan Jr.) quem me apresentou, no ano da glória de 2006, e atende por Johann Peter Hebel. Parecem histórias tiradas da caixinha de tesouros do Reader's Digest, que eu lia quando era menor -- porque um dia meu pai assinou a revista e passamos a fazer parte do seletíssimo grupo que recebeu pelo resto da vida (mesmo depois de cancelar a assinatura) histórias como a do cachorro Bill que salvou toda uma família de um incêndio, da fabulosa casa mais cara da América ou do imigrante ilegal que colhia tomates e graças-a-seu-esforço-e-superação transformou-se num neurocirurgião de sucesso. Nessa época, eu só queria saber das grandes obras, como a enciclopédia Caldas Aulete (com especial apreço pelos verbetes "bandeiras", "pássaros", "homem da caverna", "sistema solar" e "Turquia") e os almanaques Disney. Hebel tem um certo parentesco com isso tudo. Mas, como nota o Samuel, não há nos relatos de Hebel "um tom único, popularesco ou folclórico", há sim uma mistura de "oralidade e armação da sintaxe; (...) às vezes, sua matéria provém da tradição imemorial, mas há ocasiões em que se faz de repórter para relatar passagens das guerras napoleônicas; sabe contar histórias de proveito sem dispensar o paradoxo; tem intenção edificante, mas sua religião é feita menos de dogmas do que de uma moralidade esclarecida, coisa de quem não passou em vão pelo Iluminismo".

Ou seja, muito verão.

Hebel nasceu na Basiléia em 1760 e foi o responsável por redigir entre 1807 e 1815 o almanaque oficial de Baden, rebatizado por ele de O amigo da família renana. A revista chegou a vender quarenta mil exemplares por ano e em 1811 ganhou uma antologia, que reunia algumas das historietas publicadas, a Caixinha de tesouros do amigo da família renana. Foi esta obra que tornou Hebel conhecido e o fez ganhar fãs como Benjamin e Elias Canetti, que disse:

"Hebel possui aquele dom que esperamos ver num professor: fala claramente e fala para todos. Tem sede de saber e aprendeu muita coisa, mas isso só se nota quando ele transmite um quinhão de conhecimento: explica de tal modo que ninguém esquece mais. Leva todos a sério e sabe ouvir antes de responder, não para um fim estreito, mas porque participa do impulso alheio. Quem lê a Caixinha de tesouros não tem jamais a sensação de que ali haja coisa de somenos: ele sabe relatar alguma coisa de notável sobre o que quer que seja, tudo importa, porque tudo tem vida própria, não apenas a espécie humana, mas também a toupeira, a aranha, o lagarto e até os planetas e cometas, como se também estes fossem vivos".

Abaixo, três historietas, traduzidas pelo Samuel Titan Jr. (entre elas, "Reencontro inesperado", que é uma aula de como fazer o tempo passar em uma narrativa, e que segundo o professor de natação Franz Kafka é "a história mais maravilhosa que há").
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O juiz astuto
É bem sabido que nem tudo vai tão mal no Oriente. Dizem que justamente por lá deu-se o episódio que segue. Um homem rico perdera por descuido uma considerável soma de dinheiro costurada num pano. Anunciou a perda e, como é de costume, ofereceu ao bom sujeito que o encontrasse uma recompensa - e de cem táleres. Logo apareceu um homem direito e honrado. "Encontrei o dinheiro! Deve ser este aqui! Tome o que é seu!" Disse isso com o olhar desanuviado de um homem honesto e de uma consciência em paz, o que era bonito de ver. O outro também se alegrou, mas só porque reencontrara o tesouro perdido - logo se verá a quantas andava sua honra. Contou o dinheiro enquanto pensava depressa em como negar a recompensa prometida. "Meu bom amigo," começou, "havia oitocentos táleres costurados no pano. Mas só restam setecentos. Imagino que tenha aberto uma das costuras e retirado os cem táleres da recompensa. E fez muito bem. Muito obrigado!" Isso não foi nada bonito. Mas a coisa não ficou por aí. A mentira tem pernas curtas, e quem com ferro fere, com ferro será ferido. O bom sujeito, que se importava menos com os cem táleres que com a reputação imaculada, assegurou que trouxera a trouxa assim como a encontrara e que a encontrara assim como a trouxera. No fim, foram ter com o juiz. Ambos confirmaram suas histórias: um, que havia oitocentos táleres costurados dentro do pano; o outro, que não tirara nada do achado e não tocara na trouxinha. Era um mato sem cachorro. Mas o juiz astuto, que parecia conhecer de antemão a honradez de um e as más intenções do outro, resolveu o caso da seguinte maneira. Ordenou que ambos confirmassem firme e solenemente tudo o que haviam dito e sentenciou: "Assim sendo, se um perdeu oitocentos táleres e o outro encontrou apenas setecentos, então o dinheiro deste último não pode ser aquele a que o primeiro tem direito. Você, honrado amigo, fique com o dinheiro que encontrou e conserve-o até que apareça quem tiver perdido apenas setecentos táleres. E a você, não sei qual conselho dar, exceto que tenha paciência até que se apresente alguém com os oitocentos táleres". Assim falou o juiz, e assim a coisa ficou.
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Pouso breve
O chefe da posta disse a um judeu que chegara à estação com dois cavalos: "Daqui para a frente são precisos três cavalos. A estrada segue ladeira acima e o leito está cheio de valas. São três horas até o final". O judeu perguntou: "E quanto tempo levo com quatro cavalos?". "Duas horas." "E com seis?" "Uma hora." "Sabe de uma coisa?", disse por fim. "Atrele oito, assim não preciso nem partir!"
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Reencontro inesperado
Em Falun, na Suécia, há bons cinqüenta anos ou mais, um jovem mineiro despediu-se com um beijo da noiva jovem e bela e lhe disse: "No dia de Santa Lúcia nosso amor será abençoado pela mão do pastor. Então seremos marido e mulher, e vamos construir nosso próprio ninho". "Onde a paz e o amor vão sempre morar", respondeu a bela noiva, com um sorriso gentil, "pois você é tudo para mim, e sem você eu prefiro o túmulo a qualquer outro lugar." Mas quando, pouco antes do dia de Santa Lúcia, ela pediu ao pastor que conclamasse pela segunda vez à igreja "quem soubesse de obstáculo que impedisse estas pessoas de se unirem em matrimônio", foi a morte que se apresentou. Pois no dia seguinte, ao passar pela casa da noiva em seus trajes negros de mineiro - o mineiro veste sempre o seu sudário -, o jovem bateu duas vezes à janela e ainda lhe desejou "Bom dia!"- mas "Boa noite!", nunca mais. Nunca mais voltou da mina, e foi em vão que, naquela mesma manhã, ela bordou para ele, para o dia do casamento, um lenço negro de barra vermelha; como ele não voltasse, ela abandonou o lenço, chorou por ele e jamais o esqueceu. Nesse meio-tempo, a cidade de Lisboa, em Portugal, foi destruída por um terremoto e a Guerra dos Sete Anos chegou ao fim e o imperador Francisco I morreu e os jesuítas foram suspensos e a Polônia, dividida e a imperatriz Maria Teresa morreu e Struensee foi executado, a América se libertou e as forças combinadas da França e da Espanha não puderam conquistar Gibraltar. Os turcos encurralaram o general Stein na Cova dos Veteranos, na Hungria e o imperador José morreu também. O rei Gustavo da Suécia conquistou a Finlândia aos russos e a Revolução Francesa e a grande guerra irromperam e o imperador Leopoldo II desceu também ao túmulo. Napoleão conquistou a Prússia e os ingleses bombardearam Copenhague e os lavradores semeavam e ceifavam. O moleiro moía, os ferreiros martelavam e os mineiros cavavam atrás dos veios de metal em sua oficina subterrânea. Mas no ano de 1809, pouco antes ou depois do dia de São João, quando tentavam praticar uma passagem entre dois poços a bons trezentos côvados sob a terra, os mineiros de Falun retiraram do entulho e do vitríolo o cadáver de um rapaz, todo embebido em sulfato ferroso, de resto intacto e inalterado, a tal ponto que era perfeitamente possível reconhecer suas feições e sua idade, como se ele tivesse morrido uma hora antes ou cochilado durante o trabalho. Mas quando o trouxeram para o ar livre, pai e mãe, amigos e conhecidos, todos tinham morrido havia muito, ninguém conhecia o rapaz adormecido ou sabia de sua desgraça, até que chegou a antiga amada do mineiro que um dia descera para o seu turno e nunca mais voltara. Envelhecida e encarquilhada, chegou apoiada numa muleta e reconheceu o noivo; mais radiante que sofredora, deixou-se cair ao lado do querido cadáver e, depois de se refazer do abalo na alma, disse por fim: "É o noivo por quem chorei durante cinqüenta anos e que Deus me permite ver de novo antes do meu fim. Oito dias antes do casamento, ele desceu à mina e nunca mais voltou". Então o ânimo de todos à volta foi tomado de tristeza e lágrimas, ao ver como a noiva de outrora tinha as feições murchas e sem viço da velhice e o noivo conservava sua beleza juvenil; e como, depois de cinqüenta anos, tornava a despertar nela a chama do amor juvenil, sem que ele abrisse a boca para sorrir ou os olhos para reconhecê-la; e como finalmente ela, a única a conhecê-lo e a ter direitos sobre ele, finalmente pediu aos mineiros que o levassem até a sua casinha, enquanto preparavam o túmulo no cemitério. No dia seguinte, quando o túmulo ficou pronto no cemitério e os mineiros vieram buscar o moço, ela abriu uma caixinha, tirou para ele o lenço de seda negra e barra vermelha e o acompanhou em seus trajes domingueiros, como se fosse dia de casamento e não de enterro. E no cemitério, quando o deitaram no túmulo, ela disse: "Durma em paz, mais um dia ou dez, no frio leito de núpcias, e não se aborreça. Tenho pouco a fazer, venho logo, e logo será um novo dia". "O que a terra devolveu, ela não tira outra vez", disse ainda, afastando-se, e olhou uma vez mais para trás.
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