terça-feira, 27 de outubro de 2009

toco de madeira que fala

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Texto de orelha para um livro do Faulkner, A Árvore dos Desejos.

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Quando William Faulkner (1897-1962) escreveu A Árvore dos Desejos, em 1927, a imensa árvore-Faulkner ainda não existia na literatura. O condado de Yoknapatawpha, cenário fictício de seus principais livros, era só uma semente; O som e a fúria não havia sequer sido plantado; e estava longe de aflorar a grande enchente daquele que é um dos cinco romances mais incríveis desde a Arca de Noé, Palmeiras selvagens.

Naquele ano, depois de uma breve temporada em Paris (onde deixou a barba crescer e rondava o café favorito de Joyce), Faulkner tinha acabado de publicar seu primeiro romance, Soldier’s Pay, e um de seus esportes favoritos era contar histórias para crianças – era especialista nas de abóboras e Halloween. Foi então que, após ser demitido da agência de correio onde trabalhava (porque lia demais), teve a ideia deste livro.

A Árvore dos Desejos é uma odisseia fabulosa: crianças encolhem, pôneis saem de uma sacola e, se alguém “virar o travesseiro de lado antes de pegar no sono, tudo pode acontecer”. No dia do seu aniversário, a pequena Dulcie se junta ao seu irmão caçula, Dicky, à criada Alice e ao amigo George, e guiados por um misterioso garoto ruivo chamado Maurice, saem à procura de uma árvore mágica. No caminho, a caravana ganha novos integrantes: um soldado desiludido com a guerra, um toco de madeira que fala e o velhinho Egbert, um dos personagens mais sensíveis já criados pelo autor.

Quando encontram uma árvore (que não é a dos desejos, segundo o velhinho Egbert), a história se desdobra em conflitos e situações de perigo. Por baixo da narrativa, tipicamente de aventura, surge uma ferida: a ideia de que os desejos podem ser traiçoeiros e, no limite, causar o mal. Essa dimensão trágica do sonho é amplificada nas ilustrações de Guazzelli, que com um traço clássico e imagens oníricas (casas tortas, galhos retorcidos, paisagens desoladas) dá à história um contorno sinistro e delirante.

Do ponto de vista temático, A Árvore dos Desejos antecipa as obras adultas do escritor: o sul dos Estados Unidos pós-Secessão, a reflexão sobre a guerra (“nunca vi nenhum soldado ganhar na guerra qualquer coisa que seja, essas guerras dos brancos são sempre meio esquisitas”) e, sobretudo, as referências bíblicas. O antídoto para a ambição desmedida, aqui, está na renúncia e humildade – uma espécie de fé naquilo que habita a superfície do mundo –, simbolizadas pela figura de São Francisco.

Ah, a árvore do título fica longe à beça – segundo o velhinho Egbert. E no final da história, a contaminação do real pelo delírio sugere um movimento que parece fundar toda a obra daquele que J. M. Coetzee chamou de “o único gênio inequívoco da literatura norte-americana do início do século vinte”.
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domingo, 25 de outubro de 2009

não fica me excitando que eu tô de sunga

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Texto para o Brasil Econômico de sábado (p. 56). Sobre sunga.

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Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU nada diga acerca da sunga, é indiscutível no mundo de hoje o direito de usar o referido item do vestuário masculino (apud deputado Fernando Gabeira, sunga lilás de crochê, Ipanema, 1980).

Na última semana, o senador Eduardo Suplicy desfilou pelos corredores do Senado trajando uma sunga vermelho-tomate, para escândalo de inimigos e considerável fatia de seus correligionários. Tanto se falou (“não conheço a sunga de Suplicy, mas sou contra”; “sunga é mais uma complicação para a vida do indivíduo”; “subjuga a barriga”) que alguns precisaram sair em defesa do senador (“foi por cima da calça, então não vejo problema”). Chegou-se até a discutir se houve ou não quebra de decoro. Perderam-se noites de sono. A sunga, que tinha sido um presente, foi devolvida.

Nada disso teria acontecido, claro, se estivessemos falando de uma gravata. A sunga (que em São Paulo é “maiô”, e os veteranos do Clube de Regatas Tietê chamam de “calção de banho”) é polêmica por natureza. Discutir sunga acirra os ânimos, traz à tona preconceitos e, desde Tarzan, nos coloca diante da inconstância de nossa alma selvagem -- Rousseau de sunga, ressurgido nas areias de Ubatuba. Esse caráter controverso talvez explique um pouco os altos e baixos pelos quais o traje passou desde a sua criação, no início do século 20. Num passado recente, com a escalada das bermudas e ao ter sua imagem vinculada a barrigas proeminentes, meias soquete e tênis branco, a sunga saiu de moda. Caiu no ostracismo, no ridículo. Mas não morreu e vive hoje um renascimento.

Há quem diga que nunca se usou tanta sunga. Na internet, um grupo de intelectuais de São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre forma uma espécie de movimento pró-sunga. Conhecido como FPC, o grupo é um dos principais divulgadores do traje. Consideram a sunga uma conquista, já que no século 19, a roupa de banho chegava a pesar 10 quilos quando molhada, e o azul-marinho predominava. As sungas, por sua vez, são leves e divertidas, há opções de cores, além de versões fluorescentes. André Czarnobai, 30 anos, um dos fundadores da congregação, acredita que a sunga é a verdadeira contracultura. “Para fazer natação = indispensável. Para usar na praia = revela caráter, despojo e finesse. Para usar em reuniões de amigos à beira da piscina = só se tem gostosa”, enfatiza. Sobre o tópico, nunca é demais lembrar Leo Jaime, que em sua versão do standard Sunny, de 1984, alertava: “Sônia, não fica me excitando que eu tô de sunga”.

Como exemplo de por que a sunga deveria ser adotada como vestimenta oficial de senadores, outro integrante do grupo, Renato Delmonaco, 28, cita sua própria vida. “Depois que comecei a usar sunga diariamente, minha vida melhorou 300%, no mínimo.” Renato tem usado sunga todos os dias há mais ou menos um ano e meio. “É quase medicinal para mim”, conta. “Qualquer tipo de problema, forma ou natureza fica em segundo plano quando visto minha sunga.”

Se a sunga define caráter e personalidade, o episódio Suplicy é revelador. Faz pensar na primeira viagem com os amigos para a praia, na adolescência. Quando todos estão de bermuda, na areia, eis que alguém do grupo surge de sunga. Vai ter que suportar risos, escárnio, troça, zombaria. Toda uma vida será forjada ali, naquele átimo em que, de sunga vermelha, alguém resiste entre as bermudas.
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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

fotos pós-chernobyl

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Martin Amis fala, em entrevista ao Michel:

“Não procuro por histórias tanto quanto por níveis de percepção. O que quero saber é a maneira como os escritores interpretam o mundo, em que nível isso se dá, mais do que a respeito de sagas familiares ou narrativas tradicionais. Não tem a ver com contar histórias ou não, e sim com como se escreve.”

“O grande pós-modernismo europeu está acabado como ficção. Era um grande insight de como o mundo funcionava; não era, no fim das contas, um filão ficcional muito produtivo, rico por si só. Era muito auto-consciente, muito limitado, e agora o romance parece ter evoluído para uma invenção mais ampla. Não há, agora, uma grande tradição dominando o romance. Contar histórias voltou a ser importante. Enredos voltaram a sê-lo."

"Na minha geração, há uma maior liberdade em relação a essas regras, com o realismo mágico e o pós-modernismo. A realidade apresentada ao leitor não é tão confiável. Mas agora há um movimento contrário. A próxima geração, suspeito, vai precisar de velocidade e enredo. Interesse humano, não abstrações (…). Nos anos 80, talvez, a presença do pós-modernismo deixasse as coisas mais ‘fechadas’. Um romance como Money, por exemplo, enfureceria o meu pai [o escritor Kingsley Amis]. Aliás, enfureceu… Agora, apesar da liberdade de abordagem, há a volta das ‘leis da realidade’ ao romance. É a minha impressão.”
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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

minha casa engordava

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Esta é a história de como se vive na barriga de uma baleia.

Esta é a continuação da história de como se vive na barriga da baleia:

"E achando-me em dias tão difíceis decidi alimentar
a baleia que então me dava guarida:
tive jornadas que excediam em muito as doze horas
e meus sonhos foram ofícios rigorosos, meu cansaço
engordava como o ventre da baleia:
que trabalheira caçar os animais mais robustos,
despojá-los de todas as suas escamas e uma vez abertos
arrancar-lhes o fel e o espinhaço,
e minha casa engordava.

(Foi a última vez em que fui duro: insultei a baleia,
recolhi meus escassos pertences para buscar
algum abrigo em outras águas, e já me preparava
para construir um periscópio
quando no teto vi incharem como dois sóis seus pulmões
– iguais aos nossos
mas estirados sobre o horizonte –, suas omoplatas
remavam contra todos os ventos,
e eu sozinho,
com minha camisa azul-marinho em um grande prado
onde podiam alvejar-me de qualquer janela: eu, o coelho,
e os cães velozes atrás, e nenhum buraco.)

E achando-me em dias tão difíceis
acomodei-me entre as zonas mais moles e mau cheirosas da baleia."

(Antonio Cisneros, "Apêndice do poema sobre Jonas e os desalienados", no Canto cerimonial contra um tamanduá, 1968. A tradução é de Carlito Azevedo e Aníbal Cristobo)
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