segunda-feira, 29 de novembro de 2010

perder a cabeça

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"Fiz em 1914 meu primeiro busto de observação. Era meu irmão que posava. Meu pai era pintor. Eu tinha visto a reprodução de pequenos bustos sobre uma base e imediatamente tive vontade de fazer igual. Meu pai me comprou plastilina, e comecei. De início, senti um prazer extremo e tive a impressão de que a coisa viria bem facilmente, de que eu conseguiria fazer mais ou menos o que via -- ainda tenho o pequeno busto em casa. Cinquenta anos depois, é curioso confessar que, há dois dias, estou tentando fazer a cabeça daquela época, como em 1914, mais ou menos da mesma dimensão que a primeira, e enquanto em 1914 eu tinha a impressão de fazer o que queria, agora não consigo mais.

Será que é psicológico? Não sei. Mas, desde então, nunca mais consegui fazer uma cabeça simplesmente como a vejo, no sentido mais primário. Se vejo uma cabeça de muito longe, tenho a ideia de uma esfera. Se vejo bem de perto, ela deixa de ser uma esfera para se tornar uma complicação extrema em profundidade. A gente entra no indivíduo. Tudo parece transparente, a gente vê através do esqueleto.

A impossibilidade principal é apreender o conjunto e o que se poderia chamar detalhes. Assim, só penso nos olhos. [...] Sim, para esculpir bastaria essencialmente esculpir os olhos. [...] Tenho a impressão de que se conseguisse copiar só um pouquinho -- aproximadamente -- um olho, eu teria a cabeça inteira. [...] Não penso diretamente no olhar, mas na forma do olho. Se eu aprendesse a forma do olho, isso daria provavelmente algo que se assemelharia ao olhar! Sim, toda a arte consiste talvez em conseguir situar a pupila. O olhar é feito pelo que está em torno do olho. Mas a dificuldade para expressar realmente esse "detalhe" é a mesma que para traduzir, para compreender o conjunto. Se olho você de frente, esqueço o perfil. Se olho o perfil, esqueço a face. Tudo se torna descontínuo. Não consigo mais apreender o conjunto. Estágios demais. Níveis demais. O ser humano se torna complexo. E nessa medida não consigo mais apreendê-lo."


Giacometti, numa entrevista de 1962

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terça-feira, 23 de novembro de 2010

para o alto

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Alex Prager, The big valley (2008) e Weekend (2010)

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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

ela me odeia, ultimamente

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Quatro mulheres do Uma mulher, do Péter Esterházy
(tradução do Paulo Schiller)
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"Há uma mulher. Eu a amo. Ela é do tamanho de um armário. De um prédio. De uma montanha. De um búfalo. Se me desse um tapa eu voaria pela janela, mas por que ela faria isso? Decide coisas o tempo todo, telefona, providencia, manda faxes, funda empresas, ou coisa parecida, e tem também algo a ver com os impostos sobre a circulação de mercadorias. Sua cama é a cabine de comando de onde ela dá as ordens. Não usa calcinha. Telefona deitada de barriga, sobe uma das coxas, com isso a saia desliza para cima, e nessas horas aparece a sombra escura. Sombra, é como a chamo. Quando estou bem-humorado, eu grito: é pela sombra que se respeita a velha árvore! Por exemplo, digo: É aqui que você se esconde, sombra? Ou que enquanto o homem projetar sombras sempre haverá desgraças! A visão me faz sonhar. Ela aperta o telefone com a cabeça contra o ombro para que as mãos fiquem livres, mulher de negócios experiente.

Tem o raciocínio rápido, é loira, me ama. Pergunta se eu a amo; enquanto isso, naturalmente, toma notas. O que posso responder. Hein, carinha? Seu vocabulário lembra o de um hooligan dos anos 60. Eu te desejo, respondo, constrangido. Olha para mim como quem não entende o que eu disse. Meu pau levanta, explico. Ela se põe numa posição visivelmente expectante. Enquanto você telefona, e na verdade você telefona quase o tempo todo, eu te desejo. Está tudo certo no registro de imóveis?, resmunga no bocal, e para mim faz um gesto para que eu venha, vamos, “me pega”. Além disso, também gosto de conversar com você. Mais, mais. As duas coisas já bastam, não? Desejar e conversar, isso já seria o famoso eu te amo, não? Faz um gesto delicado como um armário na minha direção, e enquanto eu saio pela janela – vejo que vou despencar justamente sobre um congestionamento de trânsito, imagino a situação desagradável – ainda a ouço convencendo alguém a tomar um empréstimo."
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"Há uma mulher. Ela me ama. Ela me tranquiliza o tempo todo, acredite, diz, a título de exemplo, eu não te odeio nem um pouco. E, sufocando de emoção, acrescenta: agora vou andar de bicicleta para arejar a cabeça. Como se isso me dissesse respeito. Ou ela me acalma dizendo que não está grávida. Ou melhor, está no sexto mês, veja a barriguinha, mas não se preocupe, ela assume tudo, e, na verdade, com certeza vai ser um menino. Garantido, e me bate nas costas. Quer tudo na hora. Como se a vida, a vida dela, fosse um filme acelerado. Mal tínhamos ido para a cama e ela já se angustiava com a educação da futura criança. As línguas, o mais importante são as línguas, mas não se preocupe, eu resolvo, Instituto Goethe. Com isso tudo ela não deixa de ser atenciosa quando vê que me deprime muito, diz, levante a cabeça, não sou o único homem na vida dela (para diminuir a minha responsabilidade). E eu, estando ou não preocupado, de fato me tranquilizo. Na verdade, quando um dia eu descobrir por que ela tem pressa, por que atropela tudo, por que também me empurra para frente, para uma dieta vegetariana, vai ser tarde demais."
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"Há uma mulher. Ela me odeia, ultimamente. Porque ultimamente ando atormentado por problemas financeiros, deve estar acontecendo alguma coisa com o tal do PIB ou com o preço do leite. Mas ela não precisa se angustiar, eu vou sustentá-la, só que a boa vida vai acabar, azeite italiano e pão com sementes de gergelim, não vai ser mais assim. Como vai ser? Atualmente ficamos nos perguntando como vai ser. Como um homem pode sustentar uma mulher. Com uma quantia mensal? Uma quantia assim chamada justa, cuidadosamente calculada, uma quantia negociada em florins? E o que vai ser se durante a semana eu lhe der um chute? Problema seu. E seu. De fato. Dar todos os dias ou a cada encontro? Só que desse jeito só falaríamos de dinheiro, todos os dias. Desde que rejeitamos a ideia de eu sustentá-la em segredo – um doador anônimo, cédulas discretamente largadas sobre a penteadeira etc. – chegamos a um acordo em que, ao contrário, ela vai ao lugar previamente estabelecido (bolso interno do paletó, aba do chapéu e assim por diante) em segredo para pegar a quantia combinada. Por conta do segredo o dinheiro não vai ser mais tema, mas pelo fato dela pegá-lo também não será como se não tivesse acontecido nada. E posso pegar quanto eu quiser?

Exatamente, digo, por fim, mortalmente sério."
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"Há uma mulher. E assim por diante. Odeia todo mundo. Se estiver no clima, é má. Não transmite recados; inventa recados falsos, faz intrigas com as crianças; com os meus pais; com os dela; com os vizinhos, entre eles, todos contra todos, eles contra nós. Seus recursos são ilimitados, às vezes desiste da arma mais eficaz, o disfarce. É sincera, não usa máscara, é permanentemente nojenta. Sente-se mal quando não faz mal. Salga a comida de propósito; enfia passagens vencidas em meio aos passes de ônibus das crianças; não desliga o telefone e denuncia o dono da linha compartilhada, estende uma corda no quarto e quando a minha mãe tropeça, põe a culpa em mim; atrasa os despertadores de noite, para que de manhã todos percam a hora; nega os orgasmos, sem piscar os olhos, embora esteja babando até; em segredo modifica a minha declaração de renda, e me adverte com uma carta anônima. Esse ímpeto, ânsia de realização, prontidão permanente para o mal (maldade), o desejo ardente de prejudicar o tempo todo, de lesar, é como uma maravilha da natureza. Podem existir outros assim, entregues a uma relação passional com a vida. Para estragar a vida – com uma exceção. De tempos em tempos, ela escolhe um livro que lhe agrada na minha biblioteca e cola uma a uma as páginas (ou melhor, aos pares). Quando depois pego um Borges, para reler o conto “Pierre Ménard, autor do Quixote”, tenho o livro nas mãos como um tijolo desajeitado, um enigma secreto, como um escudo vazio, e não sou mais ninguém, ou, mais exatamente, não seria mais ninguém se nessa hora, como sempre, ela não me odiasse intensamente."
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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

hipopótamo, rei da selva

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Mario Vargas Llosa acaba de ganhar o prêmio Nobel.

Muito justo. Pode ter escrito alguns livros discutíveis nos últimos anos, mas Os filhotes, A cidade e os cachorros e Tia Julia e o escrevinhador merecem demais. No mês passado, em Madri, fui entrevistá-lo.

Llosa mora no terceiro andar de um prédio no centro da cidade. Está com 74 anos. Acorda cedo, caminha todos os dias, faz musculação e exercícios. É da turma dos escritores bombados, tipo Rubem Fonseca e Bioy Casares. Llosa vive com a mulher e, nas estantes, mesas, emoldurando a imensa biblioteca, ficam dezenas de miniaturas de hipopótamos. Conversou comigo enquanto a neta, Isabela, brincava de montar cubos coloridos no chão da sala.

Falou sobre como Paris deixou de ser a capital cultural do mundo, sobre sua experiência no sertão da Bahia e hipopótamos. No fim, me recomendou um lugar para comer ovo frito com batatas.
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Quando seu pai o colocou no Colégio Militar Leoncio Prado, em Lima, 1950, ele esperava que você deixasse de lado o gosto pelos livros. Mas aconteceu o contrário, não?

Nunca li tanto quanto nessa época. A solidão do internato, sobretudo nos fins de semana, teria sido insuportável sem a leitura. Eu tinha 14 anos e ficar internado me causava imensa claustrofobia. A leitura era uma liberação, uma maneira de escapar. Dessa época, lembro de ter lido Os miseráveis, que foi uma experiência muito importante. A lembrança de Victor Hugo está inseparavelmente ligada aos meus dois anos no colégio militar porque, sem dúvida, ele foi, com Alexandre Dumas, o melhor amigo que tive lá dentro. Li toda a série de Dumas, Os três mosqueteiros, tudo. Li muitos romances de aventura e romances franceses. Meu pai me colocou no colégio militar para que os militares me curassem daquilo que ele chamava de enfermidade literária. Mas acabei lendo ainda mais, e ganhei a experiência que me permitiu escrever meu primeiro romance, A cidade e os cachorros. Apesar de não ser autobiográfico, este livro foi feito a partir de muitas imagens de meus dois anos no colégio militar. Também escrevi muito no colégio militar. Lá, era um escritor profissional, escrevia cartas de amor e historinhas pornográficas para meus colegas. Trocava os textos por cigarro e às vezes algum dinheiro.

Dois de seus primeiros livros, Os filhotes e A cidade e os cachorros, tratam da passagem da infância para a vida adulta. Em ambos, esta experiência é marcada por certa violência – o dia-a-dia do colégio militar em A cidade e os cachorros, o acidente que sofre o protagonista de Os filhotes. A transição para a vida adulta é sempre uma experiência de trauma?

Minha entrada no colégio militar foi uma experiência traumática. Ali se vivia uma violência que eu desconhecia. Eu morava num bairro protegido, Miraflores; os meninos de Miraflores não conheciam a violência brutal de outros setores do país. No colégio militar chegavam meninos de todas as classes sociais, era um microcosmo da sociedade peruana. Lá, meninos ricos, pobres e de classe média viviam juntos; brancos, cholos, índios, negros, chineses. O clima era tenso. Havia também o machismo militar que estimulava muito um certo aspecto viril, machista. Esse clima de violência é o que se reflete em A cidade e os cachorros, uma experiência me fez conhecer melhor a realidade peruana. Quanto a Os filhotes, li num jornal que, num povoado da serra, um cão havia mordido e castrado um menino. Lembro que a imagem me impressionou, mas lembro, sobretudo, que acabei pensando que a ferida do menino, ao contrário de outras feridas, em lugar de fechar, com o tempo se abriria ainda mais. Então pensei em escrever uma história na qual um personagem vivesse essa terrível experiência, e investigar o significado disso com o passar dos anos.

No fim dos anos 50, quando você foi a Paris, a cidade era a capital cultural do mundo, o lugar para onde iam aqueles que desejavam ser escritores. Paris continua sendo esta cidade?

Não, isso mudou muito. Hoje, há outros centros culturais. Os jovens vão a Nova York, Barcelona, Madri. Também é muito mais difícil se instalar na Europa, há uma paranoia em relação a imigração. Muitos obstáculos. Quando eu era jovem, Paris se apresentava como a capital da cultura, das artes. Em todo o mundo, jovens que tinham vocação literária ou artística sonhavam ir a Paris. Continua sendo uma cidade bela e importante do ponto de vista cultural, mas não é mais o centro magnético que costumava ser. Hoje, há lugares muito mais atraentes que Paris: Londres, Nova York, Berlim.

No verão de 1959, quando chegou a Paris, a primeira coisa que fez foi, numa livraria do Quartier Latin, comprar um exemplar de Madame Bovary. Passou a noite trancado no quarto, enfeitiçado pelo livro. Acredita que se tivesse comprado algum outro romance, sua história como escritor teria sido diferente?

Certamente. Essa foi uma experiência fundamental para mim. Não só porque os romances de Flaubert me deslumbraram, mas porque me ajudaram a me tornar escritor. A correspondência de Flaubert talvez seja a melhor iniciação que um escritor pode ter. Flaubert foi um escritor que trabalhou seu talento. Não tinha um talento natural. Ele se impôs um sistema de rigor, de exigência, de autocrítica e de imenso trabalho, e isso fez brotar o talento onde não havia. Nesse sentido, Flaubert foi um mestre, me ensinou o tipo de escritor que eu queria ser.

Há 15 anos, vive neste apartamento, em Madri. O que costuma fazer, como é o seu dia-a-dia na cidade?

Tenho uma rotina muito disciplinada. Acordo cedo, perto das seis, caminho uma hora (há um circuito muito bonito, perto da Plaza de Oriente), faço musculação, exercícios. Esse momento é quando preparo o trabalho do dia, crio o clima para começar. Depois, leio os jornais. Sou um grande leitor de jornais, gosto de saber de tudo o que acontece. Então começo a trabalhar. Trabalho até às 14h. À tarde, muitas vezes, vou a alguma biblioteca ou café. As horas mais criativas são sempre as da manhã. À noite, não trabalho, vou ao cinema, ao teatro, a concertos. De segunda a sábado, trabalho no livro que estiver escrevendo, aos domingos escrevo artigos. Viajo muito também, e quando viajo não interrompo esta rotina. Trabalho onde estiver. Há pouco estive de férias com a família, em Mallorca, ficamos uma semana, e trabalhei sempre, da mesma forma. Isso não muda nunca.

Você já morou em Lima, Paris, Londres, Barcelona. Depois de tantos anos na Europa,o seu olhar sobre a América Latina se modificou? Qual a importância de reelaborar um país, uma cultura, em outro país?

Para mim, isso sempre foi fundamental. Porque eu vivi mais tempo fora do Peru do que no Peru. Isso me deu uma perspectiva, uma visão mais, creio, objetiva; me fez conhecer melhor meu próprio país. Conhecemos melhor nosso país quando viajamos ou saímos dele. Quando saímos conseguimos enxergar melhor as distorções que, muitas vezes, o patriotismo produz. É possível julgar melhor seu país quando se conhece outros países. Posso dizer que descobri a América Latina na Europa. Eu não me sentia latinoamericano enquanto vivia no Peru. Na Europa descobri que era um latinoamericano, que participava de uma comunidade, que tinha uma série de denominadores comuns, tradições, problemas, uma missão cultural. Sem Flaubert, Faulkner ou Tolstoi, sem Victor Hugo, nunca teria sido o escritor que sou. Ao mesmo tempo, a experiência de viajar também foi imprescindível. Viajar me salvou de uma certa visão estreita, nacionalista e provinciana.

E o Brasil? Você esteve no país muitas vezes. Qual delas foi a mais marcante?

Sem dúvida foi uma experiência marcante conhecer os lugares onde se passa Os sertões, de Euclides da Cunha. Escrevi um livro, A guerra do fim do mundo, sobre a Guerra de Canudos. Em 1979, durante as pesquisas para este livro, estive nos vinte e cinco povoados do interior da Bahia e de Sergipe por onde Antonio Conselheiro teria passado, ouvindo os filhos e os netos daqueles que o haviam escutado. Talvez uma das maiores emoções que tive na vida foi estar no lugar onde ficava Canudos. E guardo sempre a lembrança de grandes amigos brasileiros, Jorge Amado, Rubem Fonseca. E João Guimarães Rosa, um dos grandes autores latinoamericanosde, de quem sempre fui admirador. Grande Sertão: veredas é uma obra prima, infelizmente um livro muito mal traduzido para o espanhol.

Sua primeira mulher, Julia Urquidi, que inspirou Tia Julia e o escrevinhador, morreu em março. Você se casou com ela aos 19 anos, apesar da oposição familiar (ela era 10 anos mais velha, irmã da mulher de seu tio materno). Qual a importância dela no seu início como escritor?

Eu me casei com Julia muito jovem. Ficamos casados oito anos. Ela me ajudou muito, sobretudo nos primeiros anos, quando era especialmente difícil pensar em ser escritor. Me lembro dela com muito carinho. Há muitos anos não nos víamos, acho que depois que nos separamos nos vimos uma ou duas vezes. Uma época da minha vida ficou profundamente marcada por essa experiência.

Gostaria que comentasse uma passagem do texto que escreveu para a série de livros organizada por Franco Moretti sobre o romance, quando diz que “o mundo sem romances teria como traço principal o conformismo”.

Creio que o romance foi sempre um testemunho rebelde, de insubmissão. Em todas as épocas, os romances flagraram nossas carências, tudo aquilo que a realidade não nos pode dar e que de alguma maneira desejamos. Começamos a inventar porque o mundo não nos parece suficiente. O romance se situa justamente nesta compensação que o ser humano busca quando entende que a realidade não o satisfaz completamente. Por esse motivo, o romance causou sempre desconfiança nos governos, nas instituições que aspiram controlar a vida. As religiões e os regimes autoritários nunca foram simpáticos ao romance. E penso que têm razão: o romance é mesmo um gênero perigoso, porque provoca a imaginação, os desejos, e nos faz sentir que a vida não é o bastante, que ela não consegue aplacar todos os nossos apetites e sonhos. O romance tem a ver com esse espírito rebelde. A invenção de outro mundo, de outra realidade, onde podemos nos refugiar e viver. Escapar através da fantasia. Acredito que essa é a origem de toda ficção.

E como o livro digital pode contribuir para a continuidade desse gênero?

O livro digital vai crescer, se impor. Não tem volta. Mas não acredito que o livro de papel vá desaparecer. Vai seguir existindo, um pouco à margem, mas tudo bem. Haverá uma literatura de entretenimento, para o grande público, que deverá se desenvolver com o livro digital. E haverá uma outra, mais rigorosa, mais exigente, experimental, que ficará com o livro de papel. Mas é apenas uma suposição, ninguém sabe o que realmente vai acontecer.

Seu novo romance, O sonho do celta, é baseado na vida de um diplomata irlandês, Roger Casement (1864-1916). O que chamou sua atenção neste personagem?

Descobri Casement ao ler uma biografia de Joseph Conrad. Casement esteve na África e na Amazônia brasileira e peruana. Foi cônsul britânico no Congo belga e dedicou duas décadas da sua vida a denunciar as atrocidades do regime de Leopoldo II naquele país. Denunciou também as terríveis condições vividas pelos indígenas na Amazônia, o que influenciou de maneira decisiva a opinião pública da Europa e dos EUA. Foi importante para a independência da Irlanda, no fim do seculo XIX. Casement levou uma vida aventureira, foi grande amigo de Conrad. Acompanhou Conrad em sua jornada africana. Conrad escreveu Coração das trevas em grande parte graças a ele.

Falando em África, gostei muito da sua coleção de hipopótamos.

Tudo começou quando uma peça que escrevi, Kathie e o hipopótamo, estreou na Inglaterra e os atores me presentearam com miniaturas do bicho. Tenho muito carinho pelos hipopótamos, trata-se de um animal dócil, com o paladar delicado e uma incrível propensão ao amor. Suas principais ocupações são tomar banho, chafurdar na lama e fazer amor – eles podem passar mais de 12 horas copulando. São feios, dão impressão de brutalidade, mas são delicados. Conseguiram o que os hippies jamais conseguiram, levar a cabo a máxima “paz e amor”. Gostaria de fazer amor como os hipopótamos.
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domingo, 3 de outubro de 2010

em caso de perda, devolver para

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Texto para a seção "Pequenos absurdos", do Outlook do fim de semana.
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Na volta para o quarto, uma pensãozinha vagabunda recomendada pelo Lonely Planet (“a truly lovely hideaway”), a Simone falou sobre o lugar onde havia tomado o chá de hortelã. Nos três dias que passaram na cidade, acabavam sempre naquele lugar. Era um barzinho no pé da montanha. Não tinha nada de especial, pelo contrário: dentro, um homem dividia espaço com o fogão, canecas de alumínio e uma dúzia de copos. À frente, a tábua que servia de balcão dava imediatamente para uma espécie de quintal, um quadrado de terra batida onde, num canto, cadeiras de plástico subiam em uma pilha tímida, algumas rachadas. Um grupo de homens ao redor de uma mesa jogava um jogo de tabuleiro com pedras brancas e pretas que por mais que prestasse atenção, Bruno não conseguia entender. O lugar servia apenas chá, de hortelã, nada mais. Os clientes pegam uma cadeira e sobem a encosta. Escolhem um lugar e esperam. Depois de um tempo, o dono do bar aparece, com uma mesinha, copos e o chá fumegante nas canecas de alumínio. Foi um amigo do Bruno que morava em Granada que falou daquele lugar. Segundo ele, tinha sido descoberto pelos hippies que, no rastro do haxixe marroquino, chegavam em grupos cada vez maiores desde os anos 60. Do alto, se vê as lavadeiras à beira do rio. E há uma agitação obscura, a mesma que faz com que a gente, sem saber muito bem por quê, decida voltar a certos lugares.

Isso era mais ou menos o que estava escrito na caderneta que encontrei no ano passado, numa cabine telefônica, em Hampstead.

Apesar do casal ser espanhol (o que era possível deduzir aqui e ali), o inglês era bastante correto, e por algum motivo, quase tudo estava em inglês. Era um desses caderninhos comprados em museu — na capa, o caracol do Matisse — e tudo indica que a última semana daquela viagem havia sido em Londres. Tinham a minha idade, um pouco mais novos, talvez. O texto da caderneta, comparado ao que acabo de contar, era mais emocional, com menos ênfase nos detalhes. Também não havia o menor indício de ironia. Talvez um humor ingênuo — do tipo detestável, mas que com o tempo entendi que soava simpático, e as pessoas, afinal, gostam de textos bem-humorados, não é mesmo?

Sou formada em Letras, mas ao contrário da maioria dos meus colegas, não faço mestrado. Assim que terminei a faculdade, decidi viajar. Também não é muito original, eu sei. Estou em Londres há dois anos. Consegui emprego numa escola e moro num quarto e sala em Brent Cross. Às vezes, para me distrair, volto à caderneta. Sinto um certo desprezo pela história toda, principalmente por causa da mulher, Simone. Quando conto o episódio para amigos ou gente desconhecida, não falo dela. Ou, em alguns casos, dependendo do meu humor, ela aparece pouco, ou uma única vez: para fazer um comentário sem importância sobre o lugar do chá de hortelã, e só.

Para mim, na maior parte do tempo, o Bruno está sozinho. Enquanto espera o chá, faz círculos na areia com um pedaço de galho. Na montanha em frente, há uma mesquita semidestruída. Na rua, um homem vende repolhos (ficavam empilhados a sua volta, como se fossem emparedá-lo). Ao lado, um cego tentava vender um único limão enrugado. O dono do bar aparece, trazendo o copo com folhas de hortelã, o chá na caneca de alumínio. Volto sempre a esse ponto, e cada vez tento pensar num final diferente para a história. Mas praticamente em todos, pego o telefone e ligo para o número anotado na última página da caderneta. Do outro lado, atende um homem. Então combinamos a devolução, no sábado, que é o meu dia de folga.
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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

meu programa de tevê favorito

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Cooking with dog, narrado pelo cão, Francis.
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sexta-feira, 23 de julho de 2010

vida secreta

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Texto para o Outlook do fim de semana.
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Todos nós, em maior ou menor grau, experimentamos (e alimentamos) aquilo que pode ser chamado de “a vida secreta”. O termo se refere aqui a coisas ínfimas que perderiam a graça e/ou soariam ridículas e sem sentido se fossem contadas (porque as palavras as diminuem).

Exemplos:

No caminho para o trabalho, seguir por trajeto alternativo (mais longo) só para passar sob uma marquise que, por algum motivo, achamos bonita;

Idas solitárias à papelaria para escolha e compra de canetas;

Tentativa de pisar sempre na parte branca do segundo degrau da entrada do prédio;

Choro em posição fetal durante o banho (água fria);

Passar as compras única e exclusivamente no caixa 8, mesmo com fila maior, porque é o da atendente ruiva e de covinhas;

Etc.

Uma das características da vida secreta, talvez a mais marcante, é o não-utilitarismo de seus atos. E um dos seus exemplos mais bem-acabados talvez esteja no diário argentino de Witold Gombrovicz.

O escritor polonês, que por muitos anos viveu em Buenos Aires, conta que certa vez entrou no banheiro de um café da Calle Callao e viu as paredes cobertas de escritos e desenhos. Depois de algum tempo fechado ali, sozinho, “em uma espécie de intimidade”, decidiu contribuir com o work in progress local; sacou do bolso um lápis, molhou a ponta com saliva e rabiscou algo, “na parte de cima, para que fosse mais difícil apagar, algo completamente idiota”.

Então guardou o lápis. Abriu a porta e saiu. Atravessou o café e se misturou à multidão da rua. “Aquilo ficou lá, escrito”, conta o autor de Ferdydurke. “E desde então”, diz, “vivo com a consciência de que o que escrevi está lá.”

Essa história da vida secreta de Gombrovicz (lembrança frequente de que, por alguma razão, escreveu algo idiota na parede daquele banheiro) me veio à cabeça agora quando estampou os jornais a notícia de que durante escavações no Marco Zero, onde ficava o World Trade Center, em Nova York, operários encontraram a carcaça de uma embarcação de 9,75 metros de comprimento. Segundo arqueólogos, o navio pode ter afundado no século dezoito. Uma âncora de 45 quilos também foi encontrada no local.

Ou seja, do início dos anos 70, quando as torres ficaram prontas, até 2001, quando foram destruídas nos ataques de 11 de setembro, o World Trade Center manteve no seu subsolo um barco.

Se os lugares (praças, parques, prédios) tivessem vidas secretas – e eu aposto que sim –, essa sem dúvida seria uma das mais perturbadoras. Um barco no porão. Um prédio tão grande e asseado, com empresas e escritórios. Um lugar em que tudo converge para a eficiência. E um barco, velho e imundo, enterrado no porão. Contado assim, as pessoas olhariam de lado, disfarçando. Ninguém entenderia.
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quarta-feira, 14 de julho de 2010

buscar o estilo

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"Lembro-me da forte impressão que o estilo de Damon Runyon, tão singular, produzia em mim quando eu era jovem. Era um estilo que saltava aos olhos e dizia: 'Olhe bem para mim! Isto aqui é um estilo!' E Hemingway também tinha um estilo. São dois notáveis estilistas. Mas aí fui ler Graham Greene e não encontrei estilo nenhum. E me perguntei por que ele não tinha estilo. Eu gostava imensamente dos seus contos e dos seus romances, mas como era o estilo de Greene? E é claro que ele tinha um estilo extraordinário para contar suas histórias, com grande economia e inteligência. E é óbvio que eu tinha um entendimento adolescente do que fosse estilo, valorizando apenas as maneiras que os escritores encontravam de ser originais. Eu admirava os jornalistas cheios de estilo, como Red Smith e Mencken. O que eles escreviam era inconfundível. E o que procurei fazer bem no início, ainda estudante, foi moldar um estilo para mim, mas logo percebi que este era um esforço em vão. Eu não conseguia fazer mais do que de imitar Red Smith, ou Hemingway, ou Runyon, ou quem quer que fosse, e acabei desistindo. E percebi que aquela busca era fatal. Toda vez que eu relia os meus textos, eu pensava que o autor não era eu, era outra pessoa. E então quando me tornei jornalista sempre tentei dizer as coisas de um modo que nem era cheio de clichês e nem banal — engraçado quando possível, ou dramático se possível. Comecei a expandir minha linguagem: as frases foram ficando mais complicadas, o vocabulário mais obscuro (uma vez, usei a palavra “eclético” numa reportagem e, no jornal, saiu “elétrico”). Era um esforço deliberado para escrever de uma forma artística, mas acabei desistindo disso também. Então comecei a escrever do único modo que eu conseguia, o que me vinha à cabeça, da maneira mais natural possível. E foi a partir daí que comecei a evoluir e acabei encontrando um caminho." (William Kennedy, na Paris Review, 1989.)
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domingo, 27 de junho de 2010

a fila de wimbledon

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Texto para o Outlook desta semana.
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Para os britânicos, o tênis é um esporte empolgante, imprevisível e maravilhoso, principalmente quando se está do lado de fora do estádio, acampado, numa fila de vinte quilômetros. É por isso que o torneio de Wimbledon, cuja edição 2010 começou há alguns dias em Londres, é responsável pelo maior orgulho do país: a fila de Wimbledon.


Trata-se de um lugar para destemidos. Cerca de três mil pessoas ingressam na fila todos os dias até o fim da competição. O objetivo é apenas um: conseguir entradas para assistir aos jogos da quadra principal. Senhas são distribuídas e é proibido guardar lugar. Furar a fila é crime (punido com cerimônia de empalamento comandada por Roger Federer). Enquanto avança-se em marcha lenta (em 2005, houve espera de 36 horas para ver Tim Henman), é possível pedir pizza, cachorro-quente, comida chinesa do Mr. Chow ou fish and chips. Tudo delivery. Basta informar coordenadas como árvore mais próxima ou gorro vermelho do amigo da frente e voilà.

Grupos carregam caixas de cerveja. Jovens do Greenpeace pedem contribuições para salvar os galgos da Indonésia. Apostas são feitas -- segundo meu amigo Bernie, a família inglesa média gasta semanalmente mais com apostas (£3,60) do que com a compra de legumes (£3,40) ou frutas frescas (£2,80) -- e adesivos com a inscrição "Eu fiquei na fila em Wimbledon" são distribuídos e prontamente colados em bonés, bochechas, bebês e camisetas.

Além dos vendedores de guarda-chuva (estamos em Londres) e chaveiros de bola de tênis, representantes das mais diversas marcas oferecem amostras grátis de iogurte, água sabor pêssego, choco crispys etc. Duas moças passam distribuindo pequenas colheres -- embora ninguém saiba muito bem o que fazer com elas --, e o homem que se veste como Sr. Hulot anuncia que vai pintar o cabelo de loiro e participar do concurso de sósias do Boris Becker.

Aos poucos, a fila caminha, até a catraca, deixando para trás sua própria multidão em ziguezague, o pessoal de pé e o pessoal sentado, os com travesseiros e os sem travesseiros, os com cobertor e a turma da vuvuzela. Logo, com alguma sorte, a quadra principal surge, radiosa. Mas quem alcança o objetivo e coloca os pés no verde e púrpura de Wimbledon vai perceber que dali para a frente tudo acaba muito rápido (um set, dois), e é da fila que vai lembrar depois.

Em São Paulo, nesses dias de Copa, acontece parecido: o trabalho pára, a fila de carros cresce, nas ruas as pessoas brandem corneta, apito e bandeira. Então parece que são 36 horas assim, fila, as camisas da Seleção, até todo mundo conseguir entrar nas casas, nos bares, no churrasco do irmão, do primo. O hino. Depois, o jogo mesmo, é rápido, plof. Tudo acaba, e a gente volta pra casa pensando no trabalho do dia seguinte, em toda vizinhança que gritou gol muito antes, quando o nosso atacante ainda se preparava pra chutar (o delay que vem atacando as transmissões da Copa), e a gente volta pra casa, como se voltasse para o fim da fila.
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terça-feira, 8 de junho de 2010

história do azul

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Com o mestre DW, trabalhando na graphic novel (ainda sem título, mas azul) que deve ser publicada no próximo ano, pela Cia das Letras.
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segunda-feira, 31 de maio de 2010

ameixas, ame-as ou deixe-as

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Texto para o Outlook do fim de semana. Sobre coisas deixadas por aí.
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Na última terça-feira, duas novas estações foram inauguradas no metrô de São Paulo, Faria Lima e Paulista. Mas elas ainda não existem. Para que uma estação de metrô – rodoviária ou aeroporto – passe a existir de fato, é necessário que alguém, em algum momento, perca um objeto. Guarda-chuva esquecido no banco, título de eleitor que caiu no trilho, casaco na escada rolante. O “achados e perdidos” é a quintessência da estação de metrô e, cada vez mais, estilo de vida.

(Sobe vinheta)

Em abril, no Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, uma seção foi dedicada ao que a comunidade do cinema chama de “found footage” (gravações achadas), filmes feitos exclusivamente com material filmado por outros e encontrados por aí. Quando um turista esquece a câmera numa estação do metrô, crescem exponencialmente as chances que um “footage finder” (descobridor de gravação) encontre a fita e transforme tudo em filme experimental de quatro horas com a chamada "narrativa não-linear”.

Nos Estados Unidos, a moda chegou antes.

(Imagem de populares nas ruas de Michigan)

Desde 2001, os amigos Davy Rothbart e Jason Bitner editam a Found Magazine. A ideia da revista (toda feita de bilhetes extraviados, cartões postais achados no meio de livros, fotos perdidas, poesia em lenço de papel, post-it com dedicatória, lição de casa de algum sobrinho descuidado) surgiu quando, numa noite de neve, em Chicago, Davy encontrou um guardanapo no pára-brisa de seu carro. O recado dizia:

“Mario,

Eu te odeio.

Você disse que estaria no trabalho e por que diabos o seu carro está AQUI, nesse lugar? Você é um maldito MENTIROSO. Eu te odeio. Eu te odeio pra valer.

Amber.

Ps: Me liga mais tarde”

(Corta. Metrô de São Paulo)

As coisas perdidas podem ser de natureza diversa. Armação de óculos, clipes, receita médica, chave da casa. Um dia, o poeta Francis Ponge foi convidado por uma amiga a dar uma palestra numa faculdade. Tímido, sem saber muito bem por onde começar, achou que seria interessante dizer que “não estamos sozinhos aqui”. E então pediu um minuto de silêncio em homenagem às coisas da sala, “estas coisas cujo silêncio, uma vez mais, estamos roubando”: as paredes, as tábuas do assoalho, as chaves nos bolsos de cada um; “todos objetos que nos acompanharam, e que estão aqui conosco e devem se calar à força – talvez a contragosto –, e dos quais não tomamos conhecimento nunca”.

Certa vez, outro poeta, William Carlos Williams, deixou um recado para a esposa, certamente escrito com esferográfica em papel de pão:

“Só pra avisar

Comi as ameixas
que estavam
na geladeira

aquelas
que você provavelmente
guardou
para o café-da-manhã

Me desculpe
estavam ótimas
tão doces
e tão frias”

Até o fim desta reportagem, todavia, não houve registro de nenhum objeto ou bilhete esquecido nas novas estações do metrô paulistano.

(Sobe vinheta)
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sexta-feira, 28 de maio de 2010

assistência técnica marcel mauss

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Marcel Mauss, em Sociologia e antropologia:

"Técnicas do tossir e do cuspir. Uma garotinha não sabia cuspir, o que agravava seus resfriados. Fui informado de que na aldeia de seu pai e particularmente na família de seu pai, no Berry [província da França], ninguém sabia cuspir. Ensinei-lhe a fazer isso. Dava-lhe uma moeda por cuspida. Como ela queria muito ter uma bicicleta, aprendeu a cuspir. Foi a primeira da família a saber cuspir."

"Técnicas da atividade: descida. Nada mais vertiginoso do que ver num declive um Kabyla com seus chinelos. Como ele consegue firmar-se, e sem perder os chinelos? Tentei fazer o mesmo, não compreendo."

"Técnicas de repouso. O repouso pode ser repouso completo ou simples pausa: deitado, sentado, agachado etc. (...) A maneira de sentar-se é fundamental. Podeis distinguir a humanidade de cócoras e a humanidade sentada. E, nesta última, os povos com bancos e os sem bancos e estrados, os povos com assentos e os sem assentos."

"Técnicas do sono. Há os povos com travesseiros e os sem travesseiros. Há o uso do cobertor. Povos que dormem cobertos e os que dormem não cobertos. Há, enfim, o sono em pé."
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sábado, 15 de maio de 2010

casa nova

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Girls, "Lust for life" (e no Don't look down, da Pitchfork. Oi, anos 90)
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sábado, 8 de maio de 2010

nem parece banca

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Texto do mês para o Outlook, do Fred Melo Paiva. Sobre figurinha.
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Desde a última semana, quando o roubo de figurinhas da Copa (135 mil pacotes; 675 mil cromos) substituiu o assalto a banco, o dinheiro como conhecemos perdeu a graça. O beija-flor, a onça-pintada e o mico-leão-dourado (notas de cem, cinquenta e vinte reais, respectivamente) deram lugar a expressões faciais como a do norte-coreano Mun In-Guk (feliz) e do sul-africano Siphiwe Tshabalala (aflito), ao corte de cabelo de Charles Puyol e ao Ronaldinho Gaúcho.

Os cromos circulam, se desvalorizam, se entesouram; há inflação, há escassez. Na feira, o maço de brócolis já custa dois atletas de Honduras. O quilo do feijão, no supermercado, não sai por menos que um escudo australiano. As promoções anunciam televisores por dez cromos de meio-campistas de Gana. Há, no fim do mês, as contas a pagar: de luz (“Lionel Messi”), água (“mascote e estádio Nelson Mandela”), telefone, internet e tevê a cabo (“por mais cinco chilenos e duas brilhantes, você leva o pacote premium, senhor”). E muitos dependem do salário mínimo, que terá reajuste de Gilberto Silva, para desespero geral.

Se na Copa de 2006, meu amigo Antonio quase chorou sangue quando, num churrasco da família, um garoto se aproximou de seu escudo brilhante do Togo com as mãos sujas de sanduíche de linguiça vazando vinagrete, a situação agora ganha contornos ainda mais dramáticos. O sucesso das figurinhas da Copa (espera-se que até agosto 150 milhões de envelopes sejam vendidos) fez com que elas deixassem de ser apenas mania, para se tornarem a gloriosa moeda de um país. Basta olhar a sua volta – ou, claro, no próprio bolso.

Há, naturalmente, os obcecados pela usura. Sob elásticos equivalentes a caixas-fortes, senhas e contas na Suíça, se amontoam pilhas e pilhas de cromos autocolantes. Entre os usurários, existe aquele que se aproveita do poder (cinquenta Julio Cesar repetidos) para fazer amigos e sentir-se querido e admirado; o que não aceita que ninguém o ultrapasse na quantidade de escudos brilhantes; o que não se desfaz, em hipótese alguma, de sua coleção de Samuel Eto’o.

Do outro lado, no time dos que esbanjam, é conhecida a história de que James Joyce estabelecia uma conexão entre sua escrita e o desperdício de dinheiro (cromos). Famoso por distribuir generosas gorjetas (mesmo quando estava na pior), Joyce costumava dizer, frente às críticas da esposa, que o fluxo de dinheiro estava secretamente ligado a sua criatividade. E há a especulação, os empréstimos, o crédito, o lucro.

O jogo de bafo, prática outrora comum entre crianças, foi proibido, mas sobrevive na clandestinidade. Nas ruas em que piscam letreiros de peep show, segunda porta à esquerda, desce escada, fim do corredor, parede falsa: o jogo de bafo movimenta milhões de cromos. Isso sem falar nas operações de lavagem de figurinhas, figurinha na meia, na cueca.

Na nossa nova realidade monetária, a dos cromos autocolantes, é preciso investigar nossas relações com escudos reluzentes, David Beckham repetidos e a produtividade (geradora de figurinhas). Só assim poderemos nos posicionar diante de tal lógica econômica.
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sexta-feira, 30 de abril de 2010

feliz, todavia

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It's August and I have not
Read a book in six months
except something called The Retreat from Moscow
by Caulaincourt
Nevertheless, I am happy
Riding in a car with my brother
and drinking from a pint of Old Crow.
We do not have any place in mind to go,
we are just driving.
If I closed my eyes for a minute
I would be lost, yet
I could gladly lie down and sleep forever
beside this road
My brother nudges me.
Any minute now, something will happen.

("Drinking While Driving", Raymond Carver)
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domingo, 18 de abril de 2010

repara na barba

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Carta do Flaubert a Louise Colet, agosto de 1846:

"O que me impede de me levar a sério, embora eu tenha o espírito bastante grave, é que eu me acho muito ridículo, não deste ridículo relativo que é o cômico teatral, mas deste ridículo intrínseco à própria vida humana, e que brota da ação mais simples ou do gesto mais ordinário. Jamais, por exemplo, faço a barba sem rir, tanto que isso me parece estúpido."
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segunda-feira, 5 de abril de 2010

o mundo está cheio de objetos

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Texto para o Outlook do Brasil Econômico desta semana.
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“O mundo está cheio de objetos, mais ou menos interessantes”, disse Douglas Huebler. Alguns somem, outros aparecem. Em São Paulo, os hidrantes voltaram para o seu planeta. Os telefones públicos e relógios de rua também começam a tomar o caminho de volta.

Há cerca de dois meses, os 313 relógios de rua da cidade pararam de funcionar – antigos contratos não foram renovados, e está em curso uma licitação para escolha da nova empresa que vai cuidar da manutenção e explorar comercialmente a propaganda dos monolitos de ver as horas. Para quem não usa relógio de pulso, palmtop, iPod ou é uma das 37 pessoas do mundo que não tem celular (eu, Milton Ohata, Vanessa Barbara etc), a vida sem o relógio de rua ganha em complexidade, desafio e aventura.

Muitos dizem que no mundo contemporâneo não há mais lugar para a experiência (café sem cafeína, cerveja sem álcool, manteiga sem gordura), que as figurinhas perderam o autocolante, que a narrativa enguiçou. Pois bem. Especialistas acreditam que atravessar a cidade sem saber as horas pode elevar em 400% os níveis de percepção, estratégia e resistência física do ser humano. Há maior necessidade de superação. Porque o trânsito, a pressa e o compromisso marcado, isso tudo se enrosca nos visores vazios (ou com números desconexos) dos relógios quebrados da cidade.

Além disso, há nos visores escuros uma estranha beleza. Parecem estar quietinhos. Não marcam as horas, não brilham, nada. É como se quisessem, só de birra, contrariar uma certa ideia de que tudo deve ser dito e mostrado. “Porque”, diz a Carta de Princípios da Sociedade dos Relógios Quebrados, “nunca se falou tanto, nunca tanta opinião foi dada, nunca tanta gente falou junto ao mesmo tempo, tudo é contado (dor no joelho, passeio à esquina), e nunca os tímidos falaram tanto: se os blogs, o Twitter e o Facebook tivessem um botão de volume, e pudéssemos girá-lo para a direita, a propagação do som causaria a maior onda de tsunamis da história.”

Desligados, os relógios também se tornaram monumentos da cidade. São grandes, estranhos e cabeçudos. A criação de um roteiro denominado “Grandes, estranhos e cabeçudos” é questão de tempo. O passeio começaria na estátua do Borba Gato, passaria por toda uma seleção de bonecos de posto e, por fim, os relógios.

Apesar de todos os benefícios do não-funcionamento dos relógios, daqui a um mês, eles devem estar de volta. Saudáveis, provavelmente maiores, com design futurista e arrojado. No lugar dos antigos, teremos novos e crocantes objetos de marcar as horas no valor de 50 mil reais. Huebler, o artista norte-americano, não aprovaria: “O mundo está cheio de objetos. Não me interessa acrescentar mais nada”. Ok.
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sexta-feira, 26 de março de 2010

guia são paulo fim de semana

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Fabrício passeia com Eva Green. Piva ciceroneia Fernando Pessoa.
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"(...) no fim do dia ver com Eva Green o sol se pôr na praça do Pôr do Sol/ se Eva Green for maconheira é melhor ter um baseado no bolso/ falar de Rimbaud com Eva Green/ mas Eva Green tem cara de quem prefere Baudelaire/ traduzir Bandeira para Eva Green/ Tom Jobim para Eva Green/ Bocage para Eva Green/ em hipótese alguma ler os poemas que escrevi sobre Eva Green/ tomar um drinque no Terraço Itália com Eva Green/ visitar Betito e Gô com Eva Green/ não ir com Eva Green ao La Tartine/ a não ser que Eva Green esteja muito nostálgica/ ir ao cinema com Eva Green?/ à praça Roosevelt com Eva Green?/ sei que Eva Green não gosta de boate/ apresentar a Eva Green uma boa padaria/ amanhecer na Paulista com Eva Green/ roubar um carro conversível/ e descer para Santos com Eva Green"

(Fabrício Corsaletti, "Plano", 2010)

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"(...) Agora, vem comigo ao Bar, e beberemos de tudo nunca passando pelo caixa,/ Vamos ao Brás beber vinho e comer pizza no Lucas, para depois vomitarmos/ tudo de cima da ponte,/ Fernando, vamos ler Kierkegaard e Nietzsche no Jardim Trianon pela manhã/ enquanto as crianças brincam na gangorra ao lado/ Vem comigo, eu te mostrarei tudo: o Largo do Arouche à tarde, o Jardim da Luz/ pela manhã, veremos os bondes gingando nos trilhos da Avenida,/ assaltaremos o Fasano, iremos ver "as luzes do Cambuci pelas noites de crime",/ onde está a menina-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio,/ Não te levarei ao Paissandu para não acordarmos o sexo do Mário de Andrade/ (ai de nós se ele desperta!),/ Mas vamos respirar a Noite do alto da Serra do Mar: quero ver as estrelas refletidas/ em teus olhos."

(Roberto Piva, "Ode a Fernando Pessoa", 1961)
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quarta-feira, 10 de março de 2010

reeducação alimentar não é andar com brócolis embaixo do braço

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Texto para o caderno Outlook do Brasil Econômico. Sobre tevê a cabo.

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Para alguns, como o assessor do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, a tevê a cabo é um “veículo propagador do capitalismo” (“encarnação do demônio”), cuja influência só pode ser comparada ao poderio bélico da 4º Frota, divisão da marinha norte-americana que atua no Atlântico Sul.

Para outros, a tevê se assemelharia ao próprio assessor de Lula na categoria Charles Bovary, personagem de Gustave Flaubert cuja conversa era “sem relevo como uma calçada e as ideias de todo o mundo nela desfilavam com seu traje comum”.

Mas, claro, nada é tão simples.

Basta o controle remoto, um clique, e pronto: somos informados via Bloomberg sobre os índices pluviométricos e a acidez do solo no Japão. Na Fashion TV, aprendemos a fazer um turbante. "A Croácia é o país da moda", decide o apresentador do People + Arts, elencando os “Must-Haves for the Holiday Season”. Na Fox Life, doctor Phill, homem calvo, cultor de bigode e que (de acordo com a programação do GNT) poderia ser beneficiado pela chamada "reeducação alimentar e prática da ioga", comanda a atração A família vai ao tribunal, sobre rixas familiares que ganham contornos especialmente dramáticos diante da plateia – o episódio do dia trata de filha que proíbe mãe de visitar netos.

Um close revela os chamados hábitos alimentares do bicho-preguiça. De uma folha, na copa da árvore, o mamífero sorve água da chuva ("a preguiça toma um drinque", diz a narração, dublada, em off). No Animal Planet, ficamos sabendo que apesar de lentas em terra, as preguiças são excelentes nadadoras, além de não possuírem esmalte no dente. Há preguiças com dois dedos e preguiças com três dedos.

Para grande parte dos telespectadores da tevê a cabo, o fim das olimpíadas de inverno de Vancouver significou tristeza e pelotas na alma. No lugar das deslizantes pedras de granito de 20 quilos do curling (novo esporte nacional), o Sportv passou a exibir o campeonato de vôlei (Florianópolis contra Pinheiros) e o Sportv2, no horário antes destinado ao slalom gigante, entrevistou padre Leandro, “o sacerdote motorizado”, que participou do Moto Trilha em Anitápolis (SC).

Na Mega TV, compradores de colchão receberam como brinde um travesseiro da Nasa (não pergunte), e o reality show Recém-casados e recém-brigados, do canal Discovery Home and Health, tenta devolver o amor a jovens casais e ajudá-los, de forma urbana, a fazer as pazes.

Na faixa nobre, os canais Discovery transmitem os chamados "documentários para todos os gostos": Titanic, respostas do abismo, Profundezas: águas misteriosas e A origem dos alimentos: lula.

National Geographic exibe quarto episódio da segunda temporada de programa sobre mandíbulas e a especialista insiste, no GNT, que reeducação alimentar "não é andar com brócolis embaixo do braço".

Embora a revista Veja, em resposta ao assessor Marco Aurélio, tenha qualificado a tevê a cabo de “criativa, plural e independente”, nada é tão simples, suspira o telespectador, babando no controle remoto.

Posicionar-se ante a variedade de canais que o mundo disponibiliza a seus assinantes exige dedicação. Surpreender-se com o documentário sobre tatus-bola e crer na liberdade de escolha pelo pay-per-view (que época!) é uma atitude possível. Outra seria acreditar que também eles, os tatus-bola, perderam a graça e que comprar pelo pay-per-view não é exatamente digamos assim uma escolha. Não são as únicas, e a reflexão pode ser realizada enquanto o apresentador de Como funciona: cerveja ensina que cerveja não cria a barriga de cerveja.

Trata-se de mito.
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segunda-feira, 8 de março de 2010

so much depends upon a red wheel barrow

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Walker Evans, fotos em Birmingham e no Alabama, 1936
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sexta-feira, 5 de março de 2010

o que falta aos peixes

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"Falta aos peixes qualquer meio de comunicação conosco; assim, não conseguem despertar a nossa compaixão. Abocanham a isca mesmo quando estão são e salvos na água! Além disso, a morte não lhes altera o aspecto. Sua dor, se existe, permanece perfeitamente escondida sob as escamas." Italo Svevo, no meu episódio preferido d'A consciência de Zeno (1923), o da pesca. Em tempo: não demora e o Zeno aí do título pega um dourado de três quilos! Depois compõe uma fábula intitulada "O camarão meditativo": A vida é bela, mas é preciso ter cuidado onde se senta. Também inventa a fábula do peixe que vai ao dentista. E diz, cheio de orgulho: "As minhas fábulas pareceram-me esplêndidas. As coisas que brotam de nosso cérebro têm um aspecto de todo amável, principalmente quando examinadas logo após o nascimento". Hitchcock conta a história de um roteirista que sempre tinha suas melhores ideias no meio da noite e, quando acordava, não conseguia se lembrar delas. Então pensou: "vou pôr um papel e um lápis ao lado da cama, e quando a ideia chegar poderei escrevê-la". Então, no meio da noite, o sujeito acorda com uma ideia notável, realmente fantástica. Escreve-a com detalhes e volta a dormir. Na manhã seguinte, enquanto está se barbeando, lembra que teve uma ideia excelente. E lembra que dessa vez (alegria) anotou tudo. Corre até o quarto, apanha o papel e lê: "Rapaz se apaixona por uma moça".
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terça-feira, 2 de março de 2010

happy days

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Galeria de escritores arruinados pelo crack e suicidas, na revista Life. Abaixo, Faulkner bem verão e Jean Cocteau em chamas.




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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

não pode faltar nas férias

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"Must-Haves" for the Holiday Season

1. Food
2. Air
3. Water

(Aubrey Cloutier, numa das listas da McSweeney's)
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domingo, 31 de janeiro de 2010

rrraaahh!

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Garry Winogrand. El Morocco, 1955
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terça-feira, 12 de janeiro de 2010

muito verão

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Conto de verão (1996) é meu filme preferido do Eric Rohmer. Grande história sobre o acaso e a escolha. (Cortázar, no Jogo da amarelinha: "indicando-lhe que talvez houvesse outros caminhos e que aquele que escolheu não era o único e não era o melhor, ou que talvez houvesse outros caminhos e que aquele que escolheu era o melhor, mas que talvez houvesse outros caminhos suaves de caminhar e que ele não os tinha escolhido").


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É a história do jovem Gaspard, que vai passar o verão numa praia da Bretanha (Floripa, 2001). Ele sabe que Lèna, sua namorada, vai estar na cidade, mas não combina encontro. Enquanto não esbarra com ela (não faz muito esforço), Margot entra em cena. Garçonete na creperia dos tios (e etnóloga), Margot diz ter um namorado (que está longe e nunca aparece) e os dois se tornam amigos. Numa das caminhadas à beira mar, Gaspard e Margot avistam a baía de Saint Malo, cidade dos corsários no século XVII. Lena não aparece, Margot segue por perto e Gaspard se envolve com uma terceira garota.

Conversa-se muito, e muito se fala de como se fala muito nos filmes do Rohmer. O mais importante, acho, é que é frequente que na vida as conversas aconteçam exatamente como nas histórias de Rohmer. As coisas mais importantes nunca são ditas, as pessoas procuram essas coisas mais importantes no olhar dos interlocutores, e volta e meia trocam banalidades enquanto tentam adivinhar algo profundo e sutil. Hitchcock disse:

"O diálogo deve ser um ruído, um ruído que sai da boca dos personagens cujos atos e olhares contam uma história visual".
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domingo, 10 de janeiro de 2010

suco de tomate, por favor

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"Esse seu bigode, Fitzsimmons", disse Martin, "é fora do comum. Aventureiro e cheio de pompa."
"É mesmo?"
"Extraordinariamente vulgar. Esplêndido também, claro, e elegante, de um modo muito irlandês e sardônico. Na hora do suco de tomate deve ser uma coisa de tirar o fôlego."

(Do livro que acabei de editar, O grande jogo de Billy Phelan (1978), de Mr. William Kennedy, na nobre tradução de Sergio Flaksman).
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