sexta-feira, 23 de julho de 2010

vida secreta

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Texto para o Outlook do fim de semana.
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Todos nós, em maior ou menor grau, experimentamos (e alimentamos) aquilo que pode ser chamado de “a vida secreta”. O termo se refere aqui a coisas ínfimas que perderiam a graça e/ou soariam ridículas e sem sentido se fossem contadas (porque as palavras as diminuem).

Exemplos:

No caminho para o trabalho, seguir por trajeto alternativo (mais longo) só para passar sob uma marquise que, por algum motivo, achamos bonita;

Idas solitárias à papelaria para escolha e compra de canetas;

Tentativa de pisar sempre na parte branca do segundo degrau da entrada do prédio;

Choro em posição fetal durante o banho (água fria);

Passar as compras única e exclusivamente no caixa 8, mesmo com fila maior, porque é o da atendente ruiva e de covinhas;

Etc.

Uma das características da vida secreta, talvez a mais marcante, é o não-utilitarismo de seus atos. E um dos seus exemplos mais bem-acabados talvez esteja no diário argentino de Witold Gombrovicz.

O escritor polonês, que por muitos anos viveu em Buenos Aires, conta que certa vez entrou no banheiro de um café da Calle Callao e viu as paredes cobertas de escritos e desenhos. Depois de algum tempo fechado ali, sozinho, “em uma espécie de intimidade”, decidiu contribuir com o work in progress local; sacou do bolso um lápis, molhou a ponta com saliva e rabiscou algo, “na parte de cima, para que fosse mais difícil apagar, algo completamente idiota”.

Então guardou o lápis. Abriu a porta e saiu. Atravessou o café e se misturou à multidão da rua. “Aquilo ficou lá, escrito”, conta o autor de Ferdydurke. “E desde então”, diz, “vivo com a consciência de que o que escrevi está lá.”

Essa história da vida secreta de Gombrovicz (lembrança frequente de que, por alguma razão, escreveu algo idiota na parede daquele banheiro) me veio à cabeça agora quando estampou os jornais a notícia de que durante escavações no Marco Zero, onde ficava o World Trade Center, em Nova York, operários encontraram a carcaça de uma embarcação de 9,75 metros de comprimento. Segundo arqueólogos, o navio pode ter afundado no século dezoito. Uma âncora de 45 quilos também foi encontrada no local.

Ou seja, do início dos anos 70, quando as torres ficaram prontas, até 2001, quando foram destruídas nos ataques de 11 de setembro, o World Trade Center manteve no seu subsolo um barco.

Se os lugares (praças, parques, prédios) tivessem vidas secretas – e eu aposto que sim –, essa sem dúvida seria uma das mais perturbadoras. Um barco no porão. Um prédio tão grande e asseado, com empresas e escritórios. Um lugar em que tudo converge para a eficiência. E um barco, velho e imundo, enterrado no porão. Contado assim, as pessoas olhariam de lado, disfarçando. Ninguém entenderia.
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quarta-feira, 14 de julho de 2010

buscar o estilo

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"Lembro-me da forte impressão que o estilo de Damon Runyon, tão singular, produzia em mim quando eu era jovem. Era um estilo que saltava aos olhos e dizia: 'Olhe bem para mim! Isto aqui é um estilo!' E Hemingway também tinha um estilo. São dois notáveis estilistas. Mas aí fui ler Graham Greene e não encontrei estilo nenhum. E me perguntei por que ele não tinha estilo. Eu gostava imensamente dos seus contos e dos seus romances, mas como era o estilo de Greene? E é claro que ele tinha um estilo extraordinário para contar suas histórias, com grande economia e inteligência. E é óbvio que eu tinha um entendimento adolescente do que fosse estilo, valorizando apenas as maneiras que os escritores encontravam de ser originais. Eu admirava os jornalistas cheios de estilo, como Red Smith e Mencken. O que eles escreviam era inconfundível. E o que procurei fazer bem no início, ainda estudante, foi moldar um estilo para mim, mas logo percebi que este era um esforço em vão. Eu não conseguia fazer mais do que de imitar Red Smith, ou Hemingway, ou Runyon, ou quem quer que fosse, e acabei desistindo. E percebi que aquela busca era fatal. Toda vez que eu relia os meus textos, eu pensava que o autor não era eu, era outra pessoa. E então quando me tornei jornalista sempre tentei dizer as coisas de um modo que nem era cheio de clichês e nem banal — engraçado quando possível, ou dramático se possível. Comecei a expandir minha linguagem: as frases foram ficando mais complicadas, o vocabulário mais obscuro (uma vez, usei a palavra “eclético” numa reportagem e, no jornal, saiu “elétrico”). Era um esforço deliberado para escrever de uma forma artística, mas acabei desistindo disso também. Então comecei a escrever do único modo que eu conseguia, o que me vinha à cabeça, da maneira mais natural possível. E foi a partir daí que comecei a evoluir e acabei encontrando um caminho." (William Kennedy, na Paris Review, 1989.)
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