segunda-feira, 28 de março de 2011

emilia e julio, julia e emilio

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Traduzi um trecho do Bonsái, de Alejandro Zambra. E, traduzida pelo Paulo Werneck, uma das entradas dos diários do Ricardo Piglia.
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"A primeira mentira que Julio contou a Emilia foi que tinha lido Marcel Proust. Não costumava mentir sobre suas leituras, mas naquela segunda noite, quando os dois sabiam que alguma coisa estava começando entre eles, e que essa coisa, durasse o que durasse, ia ser importante, naquela noite Julio impostou a voz e fingiu intimidade, e disse que sim, que tinha lido Proust, aos dezessete anos, num verão, em Quintero. Naquela época ninguém mais passava as férias em Quintero, nem sequer os pais de Julio, que tinham se conhecido na praia de El Durazno, iam a Quintero, um bonito balneário mas agora invadido pelo lúmpen, onde Julio, aos dezessete, conseguiu a casa de seus avós para se trancar e ler Em busca do tempo perdido. Era mentira, claro: ele tinha ido a Quintero naquele verão, e tinha lido muito, mas Jack Kerouac, Heinrich Böll, Vladimir Nabokov, Truman Capote e Enrique Lihn, não Marcel Proust.

Naquela mesma noite, Emilia mentiu a Julio pela primeira vez, e a mentira foi, também, que tinha lido Marcel Proust. No começo, ela se limitou a concordar: Eu também li Proust. Mas logo houve um grande silêncio, que não era um silêncio incômodo, mas apreensivo, de maneira que precisou completar a história: Foi no ano passado, não faz muito tempo, levei uns cinco meses, andava atarefada, você sabe, com os trabalhos da faculdade. Mas me propus a ler os sete tomos e a verdade é que esses foram os meses mais importantes da minha vida de leitora.

Usou essa expressão: minha vida de leitora, disse que aqueles haviam sido, sem dúvida, os meses mais importantes da sua vida de leitora.

Em todo caso, na história de Emilia e Julio há mais omissões que mentiras, e menos omissões que verdades, dessas verdades que são chamadas de absolutas e que costumam ser incômodas. Com o tempo, que não foi muito mas o bastante, trocaram confidências sobre seus desejos e aspirações mais íntimos, seus sentimentos desmedidos, suas breves e exageradas vidas. Julio confiou a Emilia assuntos que só o psicólogo de Julio saberia, e Emilia, por sua vez, converteu Julio numa espécie de cúmplice retroativo de cada uma das decisões que havia tomado ao longo da vida. Aquela vez, por exemplo, quando decidiu que odiava sua mãe, aos catorze anos: Julio a escutou atentamente e opinou que sim, que Emilia, aos catorze anos, estava certa, que não havia outra decisão possível, que ele teria feito o mesmo e, claro, se então, aos catorze, eles já estivessem juntos, ele com certeza a teria apoiado.

A relação de Emilia e Julio foi cheia de verdades, de revelações íntimas que rapidamente estabeleceram uma cumplicidade que eles quiseram entender como definitiva. Esta é, então, uma história leve que se torna pesada. Esta é a história de dois estudantes devotados à verdade, a dizer frases que parecem verdadeiras, a fumar cigarros eternos, e a se fechar na violenta complacência dos que se creem melhores, mais puros que o resto, que esse grupo imenso e desprezível que chamam de o resto.

Rapidamente aprenderam a ler os mesmos livros, a pensar parecido e a disfarçar as diferenças. Logo moldaram uma vaidosa intimidade. Ao menos naquela época, Julio e Emilia conseguiram se fundir numa espécie de vulto. Em resumo, foram felizes. Disso não resta dúvida."

(Bonsái, Alejandro Zambra, 2006)
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"Foi ao vernissage de uma exposição de León Ferrari no Filo e, quando estava de saída, encontrou Miguel, amigo da vida inteira, e com ele ficou. Começaram a beber em diferentes bares e, primeiro Julia, depois a menina que estava com Miguel, os deixaram sós. Os dois eram -- ou foram -- bons escritores, mas pararam de publicar, e as lembranças da juventude ajudavam a seguir adiante.

Mal-entendidos, piadas sangrentas, referências equívocas. Conversas errantes, difíceis de transmitir: torcidas pela dupla temporalidade da ironia, por sua captação diferida. Acabaram ao amanhecer num dos únicos bares abertos, atrás do cemitério da Recoleta, e despediram-se como se nunca mais fossem se encontrar.

Emilio voltou a seu apartamento, Julia não estava lá, tinha ficado farta daquelas histórias de bêbados. Sentia-se enjoado, insone; buscou uma garrafa de água na geladeira; depois desceu para comprar cigarros e, quando atravessava a rua Ayacucho na direção da avenida Santa Fe, viu a igreja.

Fazia quantos anos que não entrava numa igreja? A quietude, as mulheres sentadas nos bancos de madeira, a pia de água benta, um sacerdote atrás das cortininhas do claustro, palavras em latim, murmúrios. Então vai até o confessionário, ajoelha-se.

O conto termina aí? Ou inclui o que diz ao se confessar?"

("Notas em um diário", Ricardo Piglia)
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