domingo, 27 de novembro de 2011

chora, homenzinho

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"Como tantas outras vezes, coube a Homero jogar a primeira pedra. Penso num verso muitas vezes repetido da Odisseia: "E contemplava em lágrimas o grande deserto do mar" (Odisseia V, 84). Ele se refere ao episódio no qual o herói é novamente retido numa ilha, prisioneiro de uma mulher tomada de amores (no caso, a ninfa Calipso). Traduzido literalmente, o verso diz: "Para o mar, o infecundo, olhando, enquanto as lágrimas lhe escorriam". Homero opera aqui uma subtração de líquidos. A umidade menor, o véu de lágrimas, é cercada, reabsorvida sumariamente — para não dizer sorvida — pela umidade maior, o mar salgado. O próprio mar não se manifesta, mas adivinhamos o que ele diria, se pudesse falar: chora, homenzinho, chora até cansar; logo mais sorverei todo esse grão de umidade que te faz quem és. Entre os incontáveis momentos monológicos que fazem avançar a epopeia, este é um dos mais solitários e comoventes. E a formulação deve ter parecido certeira também para o poeta, que a repete várias vezes. Ela é a rima secreta e recorrente de todas as aventuras que a Odisseia relata. Pois estas não são mais que as tribulações de um homem a quem Poseidon aplica sempre uma nova peça: uma parábola da vida, com muitos momentos de comédia, em torno das frustrações e dos reveses do herói desafortunado. Mas é a inclemência da natureza, na figura do mar sem fim — à primeira vista, mero instrumento dos deuses, mas na verdade um elemento de ânimo próprio —, que confere traços trágicos ao relato das viagens de Odisseu. Pois não há astúcia que o livre do fato de que o homem também é feito de água, de um agregado de líquidos que põem seu corpo à mercê dos ciclos naturais. São as seivas vitais que desestabilizam sua psique e perturbam a economia dos sentimentos — sangue, suor e lágrimas, para dizê-lo com concisão. Por isso, a comparação entre mar e deserto traduz o essencial: de um lado e de outro, o elemento infecundo. Decisiva, aqui, é a desproporção: de um lado, o oceano, a grande reserva de cloreto de sódio do planeta; de outro, os borrifos de água e de sal nos olhos de um homem solitário, que chora à beira-mar."

Durs Grünbein, "As lágrimas de Odisseu", The bars of Atlantis, 2009.

(Tradução Samuel Titan Jr.)
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domingo, 6 de novembro de 2011

lições do morto-vivo

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Texto de orelha que escrevi para A página assombrada por fantasmas, livro de contos do Antonio Xerxenesky.

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Na primeira destas nove histórias, na cena inicial, um sujeito lê um livro. Ainda não sabemos, mas essa imagem, essa réplica em escala reduzida do leitor real, prefigura um tema: são as leituras, e sobretudo as maneiras de ler, que fazem avançar os contos de A página assombrada por fantasmas, terceiro livro de Antonio Xerxenesky. Os fantasmas, como geralmente acontece, são uma disposição — podemos enxergá-los ou não. Com a ficção (e a realidade), acontece algo parecido: o sentido não depende apenas de quem escreve, mas também de como se lê. E essa talvez tenha sido a grande lição de Borges, o morto-vivo mór das letras argentinas, que aparece e desaparece a todo momento nas páginas deste livro.

São as leituras que conduzem o narrador nada confiável de “Esse maldito sotaque russo”. O conto é a história de um investigador cuja especialidade é encontrar escritores reclusos e desaparecidos. Numa trama sórdida (e aqui é impossível dizer "sórdida" sem dizer paródica), que envolve o escritor norte-americano Thomas Pynchon e seu tradutor brasileiro, uma tenista sensual e litros e mais litros de vodka, o tal detetive consegue interceptar um original do autor de Against the day, que será, ao mesmo tempo, lido como obra “brilhante” e “lixo ilegível”. E o que sabemos de um texto antes de ler vai se mostrar tão ou mais importante do que o texto propriamente dito.

Nas histórias de Xerxenesky, como em certo ramo da narrativa contemporânea (Bolaño, Vila-Matas), o real é perturbado e contaminado pela ficção. Em “Amanhã, quando acordar”, um jovem casal vai passar o ano-novo no litoral gaúcho, e a leitura das primeiras linhas de um livro de Javier Marías parece desencadear uma situação terrível. “A morta-viva” coloca em cena um sujeito que conhece uma garota na fila de um cinema em Buenos Aires. Os dois começam a sair, e depois de um ou dois encontros e alguns indícios (um ex-namorado chamado Rímini, doze ligações não atendidas no celular), ele passa a desconfiar, e ter certeza!, de que ela é a obsessiva e pegajosa Sofia, personagem de Alan Pauls em O passado. O protagonista de “A breve história de Charles Mankuavic”, por sua vez, abandona a literatura ao descobrir uma nova e assombrosa forma de ler sua própria obra.

A paranoia deflagrada pela leitura — que no conto “Sequestrando Cervantes” ganha ares de complô e ficção científica — é uma das maneiras de ler as histórias deste livro. Mas existem outras. Trata-se também de textos que homenageiam e ironizam os gêneros. E de um mundo cujas promessas de aventura se cumprem exclusivamente nos livros ou a partir deles. E de um jovem escritor de Porto Alegre. E de planos de fuga — através da ficção.
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