segunda-feira, 19 de agosto de 2013

nem totalmente bom, nem totalmente ruim; nem heroico, nem destituído de heroísmo; nem esplêndido, nem privado de momentos luminosos

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"É óbvio que Homero e a natureza não são uma coisa só, e que Tolstói e a natureza não são uma coisa só. De fato, aquilo que chamam de objetividade de Homero, ou de Tolstói, não é objetividade de maneira nenhuma. Muito ao contrário, trata-se da mais opulenta e pródiga subjetividade possível, pois cada objeto na Ilíada e em Anna Kariênina existe no ambiente daquilo que devemos denominar de amor do autor. Mas tal amor é tão generalizado, tão constante e tão equitativo que cria a ilusão da objetividade, pois tudo na narrativa, sem exceção, existe na narrativa, assim como tudo, sem exceção, na natureza existe no tempo, no espaço e na atmosfera. Para perceber o caráter da objetividade de Tolstói, basta compará-la à de Flaubert. Da forma como a palavra é empregada na crítica literária, Flaubert deve ser considerado tão objetivo quanto Tolstói. No entanto, está claro que a objetividade de Flaubert é carregada de irritabilidade, e a de Tolstói, de afeição.

Para Tolstói, todos e tudo possuem uma graça salvadora. A exemplo de Homero, ele dificilmente nos permite optar entre os antagonistas — assim como não nos atrevemos a dar toda a nossa solidariedade nem para Heitor nem para Aquiles, ou, em sua cena decisiva, nem para Aquiles nem para Príamo, também não podemos dizer, entre Anna e Aleksei Kariênin, ou entre Anna e Vrónski, quem está certo ou errado. Mais que qualquer outra coisa, e sem dúvida anterior a qualquer habilidade especificamente literária que possamos isolar, é essa faculdade moral, essa faculdade de afeição que explica a singular ilusão de realidade que Tolstói cria. Ele é capaz de mostrar seus personagens em sua inteireza e em sua contradição, em seus fracassos e em seus grandes momentos, em sua banalidade e em seu fascínio. [...]

Aquilo que chamamos de a objetividade de Tolstói é simplesmente a capacidade de seu amor não sofrer nenhum enfraquecimento ante a constatação e a conclusão que disso decorre, de que a vida em geral fica abaixo do ideal que ela forma de si mesma. Constitui um sutil triunfo da arte de Tolstói a circunstância de ela nos induzir a aderir com entusiasmo à sua representação da maneira como são as coisas. Afirmamos com tanta alegria nossa adesão ao que Tolstói nos mostra e com tão boa vontade chamamos isso de realidade porque temos algo a ganhar com o fato de isso ser realidade. Pois a esperança de toda pessoa digna, razoavelmente honesta, é ser julgada à luz da representação da natureza humana criada por Toltstói. Talvez o que Tolstói tenha feito, na verdade, seja instituir como realidade o julgamento que toda pessoa digna e razoavelmente honesta provavelmente faz de si mesma — alguém nem totalmente bom, nem totalmente ruim; nem heroico, nem destituído de heroísmo; nem esplêndido, nem privado de momentos luminosos; alguém que não pode ser entendido mediante nenhuma fórmula, mas que tem seu princípio de vida, e que de algum modo, e a despeito de ideias convencionais, consegue manter uma inesperada dignidade."

Lionel Trilling, The Opposite Self: Nine Essays in Criticism, 1955
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