domingo, 12 de janeiro de 2014

a mão esquerda tremia às vezes

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"[...] 'Você dormiu essa noite?'

'Não', ela respondeu.

'Ventou demais. Não parava de ventar. Ventou até o amanhecer. Eu adoro ouvir e sentir esse tipo de vento. Morno, quase quente. Chegou a dobrar as árvores lá fora. Dava pra ouvir o vento nas árvores. Aquele som pesado, de tudo sendo espalhado.'

'Ouvindo aquele barulho e sentindo a força do vento, não podia acreditar que estava quente.'

Quando tudo é novo, os prazeres são superficiais. Constatei que me dava uma satisfação misteriosa pronunciar o nome dela em voz alta, recitar as cores de seu corpo. Cabelo e olhos e mãos. A neve fresca dos seios. Absolutamente nada parecia banal. Eu tinha vontade de fazer listas e classificações. Simples, básico, verdadeiro. A voz dela era suave e sutil. Os olhos eram tristes. A mão esquerda tremia às vezes. Era uma mulher que tivera problemas na vida, um casamento desastroso que deixara marcas, talvez, ou uma amiga querida que havia morrido. A boca era sensual. Ela inclinava a cabeça para trás de leve quando estava à escuta. O tom de castanho do cabelo era comum, com laivos grisalhos, pequenos toques ou lampejos, que pareciam surgir e sumir com variações da luminosidade.

Tudo isso eu disse a ela, e mais ainda, descrevendo de modo detalhado a maneira exata como a via, e Christa parecia contente com essas atenções.

Passamos a manhã na cama. Depois do almoço fiquei flutuando na piscina. Christa deitou-se à sombra, nua, recuando cada vez que a linha do sol atingia seu cotovelo ou encostava em seu calcanhar rosado.

'Temos que começar a pensar', disse ela. 'Tem o voo das cinco.'

'Não estamos nem mais na lista de espera. Viemos pra cá sem pedir que eles avançassem nossos nomes na lista. Sem chance.'

'Preciso ir embora.'

'Eu ligo depois. Dou os nossos nomes. Vamos ver quais os números que eles vão dar. A gente pode ir amanhã. Amanhã são três voos.'

Ela enrolou-se numa toalha grande e sentou-se na escadinha do pátio. Claramente, queria dizer alguma coisa. Permaneci em pé no fundo da piscina, com a água à altura do peito.

Era o quarto dia em que ela tentava sair da ilha. Estava começando a ficar muito assustada nas últimas vinte e quatro horas. O calvário no aeroporto, disse ela, fizera-a sentir-se impotente, patética, perdida. A maneira estranha de falar das pessoas. O dinheiro cada vez mais curto. As viagens de táxi pela serra. A chuva e o calor. E a tensão, a tensão sombria, o tom ou atmosfera ínsita, a lógica infausta do lugar. Era como um sonho, um pesadelo de isolamento e imobilidade. Ela precisava ir embora da ilha. Teríamos aquelas horas juntos. Aquele episódio, como ela dizia. Mas depois eu teria de ajudá-la a ir embora. [...]"

"Criação" (1979), O Anjo Esmeralda, Don DeLillo
(trad. Paulo Henriques Britto)
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