sábado, 8 de novembro de 2014

o braço não é o braço

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"Se não viria a falar muito do braço é porque logo, quase rápido demais, conseguiu expulsá-lo de seu espírito — exceto pela manhã, ao despertar, quando ainda o buscaria, mas nunca por mais de um segundo. Canhoto à força, ele se adaptou sem fazer fita: tendo se forçado com êxito a escrever com a mão restante — e, já que estava nisso, também a desenhar, coisa que nunca fizera com a direita —, renunciou sem dó a certas práticas agora inacessíveis, como descascar uma banana ou amarrar os cadarços. [...]

Anthime teve de renunciar também, quando queria refletir, esperar, dar-se ares ou mostrar-se preocupado, às posturas clássicas consistindo em cruzar os braços ou juntar as mãos atrás das costas. No começo, porém, continuou a esboçá-las instintivamente, lembrando apenas no último instante que os reforços não chegariam a tempo. Mas, uma vez convicto de sua condição de maneta, Anthime nem por isso capitulou, fazendo uso da manga direita vazia como de um braço imaginário, enrolando-a no braço esquerdo, sobre o peito, ou apanhando-a pelo punho, às costas, e segurando-a com firmeza. E, por mais convicto que estivesse, quando se espreguiçava maquinalmente, na hora de despertar, ele estirava também, em espírito, o membro desaparecido — gesto atestado por um movimento discreto do ombro direito. Em seguida, uma vez abertos os olhos, uma vez constatado que haveria pouca coisa a fazer no dia, não era raro que ele voltasse a dormir, depois de eventualmente se masturbar — o que, com a mão esquerda, foi um problema logo resolvido.

Falta frequente do que fazer, portanto, que Anthime, na medida do possível, tentou vencer, treinando-se para folhear o jornal com uma só mão e até embaralhar as cartas antes de começar uma partida de paciência. Conseguindo finalmente prender seus trunfos com o queixo, ele precisaria de um pouco mais de tempo para se arriscar a jogar manilha em silêncio no Círculo Republicano, na companhia de outros estropiados de retorno do front como ele — todos igualmente preferindo não evocar jamais o que tinham visto por lá. É bem verdade que Anthime jogava mais devagar que os aleijados e os pernetas, mas menos que as vítimas do gás, que não dispunham de cartas em braile. No fim, como os outros se oferecessem para ajudá-lo e aproveitassem para olhar seu jogo, Anthime acabou por se aborrecer e deixou de lado as reuniões do Círculo.

[...] Ao cabo de alguns meses, com efeito, sentiu renascer um braço direito imaginário, mas de ares tão reais quanto o esquerdo. A existência desse braço, e mesmo sua autonomia, foi se manifestando mais e mais por conta de diversas manifestações dolorosas e lancinantes, ardências, contrações, cãibras e comichões — Anthime sendo obrigado a se conter no último instante para não começar a se coçar —, sem falar da velha dor no punho. A impressão de realidade era intensa e detalhada, chegando mesmo à percepção do anel de sinete pesando sobre o dedo mínimo, ao passo que as dores se agravavam ao sabor das circunstâncias: ataques de banzo ou mudanças de tempo, sobretudo quando estava úmido e frio, à maneira do que acontece com os artríticos.

Esse braço ausente, volta e meia mais presente que o outro, insistente, vigilante, zombeteiro feito a má consciência, Anthime julgava ser capaz de fazê-lo produzir movimentos voluntários, executando gestos derrisórios ou decisivos que ninguém mais podia ver: tinha a plena certeza de poder se apoiar num móvel, apertar o punho, controlar os diversos dedos, chegando mesmo a tentar atender o telefone ou esboçar um gesto de adeus — agitando ou julgando agitar a mão direita por ocasião de uma despedida e ganhando fama de pouco afetivo aos olhos de quem o visitava.

[...] Anthime deu consigo no consultório do clínico Monteil, explicando as coisas, indicando com a mão esquerda a ausência do braço direito como quem designa uma testemunha muda, um cúmplice meio constrangido por estar ali — enquanto Monteil, ar compenetrado, escutava-o e olhava pela janela, diante da qual, ainda e sempre, nada passava. Tendo Anthime exposto seu caso, Monteil fez silêncio por um instante e depois se defendeu com um breve discurso. Acontece muito, discorreu ele, há muitos relatos a respeito. É a velha história do membro fantasma. Às vezes acontece que persistam a consciência e a percepção de uma parte do corpo perdida, para então desaparecer, alguns meses depois. Mas acontece também — e parecia ser esse o caso de Anthime — que a presença desse membro assombre a organização do corpo muito tempo depois da perda.

Em seguida, o doutor desdobrou classicamente esse discurso, lançando mão de precisões estatísticas (para oito em cada dez pessoas, o membro superior direito é o mais hábil), de anedotas históricas (tendo perdido o braço direito em Santa Cruz de Tenerife e sentido, na sequência, as mesmas dores que Anthime, o almirante Nelson via nelas uma prova da existência da alma), de pilhérias medíocres (é no dedo anular da mão esquerda que se costuma instalar a aliança, que só pode ser tirada com a mão direita: grave problema para o maneta infiel), de comparações paralisantes (certas vítimas de amputação do pênis relataram ereções e ejaculações fantasmáticas), de franqueza clínica (a origem dessas dores é tão misteriosa quanto o fenômeno em si mesmo) e de perspectivas meio tranquilizadoras (isso vai passar sozinho, em geral diminui com o tempo), meio inquietantes (mas isso pode bem durar uns vinte e cinco anos, é coisa que já se viu)."

Trecho de 14, do Jean Echenoz (tradução Samuel Titan Jr.)
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quinta-feira, 6 de novembro de 2014

um barão

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Fiz uma nota de apresentação (quarta capa) para As surpreendentes aventuras do Barão de Munchausen, que a Cosac Naify lança este mês.

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Nunca houve aventuras como as do Barão de Munchausen. São também as mais incríveis narrativas de viagem de que se tem notícia.

Munchausen nasceu em 1720, foi tenente, capitão de cavalaria, serviu num regimento russo e lutou em duas guerras turcas – além de ter carregado sua imaginação por Cairo, Londres, Gibraltar, pelo Ceilão, África, e uma infinidade de lugares, incluindo a Lua e o centro da Terra.

Depois de doze anos de serviço militar, aposentou-se. Nas recepções em sua casa em Hanover, na Baixa Saxônia alemã, gostava de entreter os amigos com suas histórias. Entre os ouvintes, estava o bibliotecário Rudolf Erich Raspe (1736-94), a quem se atribui a autoria de parte dos relatos do Barão. Mas Munchausen, o personagem, se tornou maior.

Esta edição traz as histórias escritas por Raspe (parte delas saíram pela primeira vez numa revista chamada Manual para pessoas divertidas) e, inéditas no Brasil, outras dezessete, de autoria variada, que foram sendo publicadas ao longo dos anos. Com ilustrações de Rafael Coutinho, que dão à jornada contornos ainda mais fabulosos, este livro é uma espécie de jogo de tabuleiro ou videogame, a cada capítulo uma nova fase, com seus desafios, ironias, palácios voadores e, do fundo do mar, um navio içado com a ajuda de um balão. Absolutamente imperdível, cavalheiros.
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