sábado, 12 de dezembro de 2015

consenso, mercado, exceção

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"Por que essa tendência a confundir maioria e consenso com democracia, ainda mais quando se trata de arte? Porque a exceção, que é fundamental nas artes e que por isso mesmo precisa ser defendida a despeito de gostos e tendências, é também o que está ligado ao risco, ao disfuncional, ao erro e ao fracasso. Nada disso combina com discursos politicamente edificantes.

Umas das principais perversões do mundo contemporâneo tem a ver com a confusão entre essas duas visibilidades: 1) a visibilidade (e o direito à existência) do que antes não podia ser visto e 2) a visibilidade autorreplicante do que quanto mais se vê mais é visto.

São duas coisas completamente diferentes e, em certo aspecto, conflitantes. No primeiro caso, está a população que antes era segregada às rodoviárias e hoje tem direito de acesso aos aeroportos e ao transporte aéreo, como qualquer cidadão. No segundo, está o princípio de mercado elevado à enésima potência pelos algoritmos que estruturam a lógica da internet: quanto mais uma coisa é vista, mais ela será visível. Ou seja, você tende a ver somente o que todo mundo vê, embora a rigor tenha acesso a tudo.

Pela lógica tautológica da internet, o que ninguém acessa torna-se cada vez mais inacessível, embora esteja, em princípio, disponível. É fácil entender como as exceções são banidas desse mundo da visibilidade total para um limbo de invisibilidade que equivale ao desaparecimento e à inexistência. E nesse sentido, associar a exceção na arte a elitismo e a antidemocracia não ajuda nem democratiza coisa nenhuma."

"Visibilidade", Bernardo Carvalho
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sábado, 21 de novembro de 2015

vocês se perdem um do outro

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"This poem is concerned with language on a very plain level.
Look at it talking to you. You look out a window
Or pretend to fidget. You have it but you don’t have it.
You miss it, it misses you. You miss each other.

The poem is sad because it wants to be yours, and cannot.
What’s a plain level? It is that and other things,
Bringing a system of them into play. Play?
Well, actually, yes, but I consider play to be

A deeper outside thing, a dreamed role-pattern,
As in the division of grace these long August days
Without proof. Open-ended. And before you know
It gets lost in the steam and chatter of typewriters.

It has been played once more. I think you exist only
To tease me into doing it, on your level, and then you aren’t there
Or have adopted a different attitude. And the poem
Has set me softly down beside you. The poem is you."

"Paradoxes and oxymorons", John Ashbery (Shadow train, 1981)
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terça-feira, 17 de novembro de 2015

frase-balzac, frase-flaubert

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"Flaubert pratica a elipse ("substância especial"). Ele não apõe. [...] Para ele, a frase é como um objeto, um microssistema com hierarquia interna (em oposição a Balzac, que acumula uma pluralidade de incidentes). Toda a lógica deve estar contida na frase. A frase é um envelope lógico (sua origem, sua matriz é efetivamente a oração, noção lógica, não gramatical).

Aquilo que Balzac teria catalisado é o que Flaubert esvaziou: a única e simples frase de Flaubert ("Como fazia um calor de trinta e três graus, o bulevar Bourdon estava completamente deserto") teria rendido um parágrafo inicial inteiro em Balzac — considerações climáticas sobre Paris, sociologia de Paris no verão, topografia do bairro da Bastilha etc.

Convém notar a relação com a ciência, com o discurso científico. Balzac está mais próximo da ciência do que Flaubert. A elipse não é científica: ser elíptico não pega bem. A elipse supõe a escolha de outro sistema de valores — a arte. Na arte, o implícito é (pelo menos era, na arte clássica) um valor.

Ou ainda: o silêncio. A frase flaubertiana, sem nunca ser hermética, faz ouvir silêncios. O silêncio é o lugar constitutivo da frase, assim como da música."

"Sobre sete frases de Bouvard e Pécuchet", R. Barthes, 1975 (na Serrote)
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terça-feira, 3 de novembro de 2015

quatro historinhas

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Um texto para a Folha (sobre palavras) e três para a Trip (ref. Pablo Escobar, Hilda Hilst e Vilanova Artigas).

1
Se o narrador ou o universo de uma história pedem, não vejo problema em usar termos em inglês ou "gerados" pela internet. Pelo contrário: é o tipo de coisa que pode dar cor, dizer muito sobre a trajetória ou visão de mundo de um personagem ou narrador específicos.

O mais importante, acho, é ter em mente que: escolher uma palavra é não escolher outra. Ao usar uma palavra estamos colocando-a em circulação. De certo modo, mantendo-a viva. E o contrário é verdade também: cada vez que escrevemos "ELEGANTE" um reator explode em Fukushima e doze gerações da palavra "GARBOSO" morrem no Pacífico.

Porque para além do enredo e dos temas, dos personagens e do tom, há sempre as palavras.

Nos últimos anos, editei no Brasil três livros do escritor português Valter Hugo Mãe. Vez ou outra me perguntam a razão de não adaptar o texto para o português brasileiro. Em primeiro lugar, trata-se de uma só língua, o português — e não é possível "traduzir" do português para o português. Fazer ajustes ("abrasileirar" ou "aportuguesar" o vocabulário) seria apagar particularidades, reduzir possibilidades da língua e da cultura.

Ler um livro é também entrar em contato com essas possibilidades. E se a internet gera palavras, isso faz parte do nosso tempo e pode ser usado por quem escreve para criar algum tipo de efeito (as palavras são tudo).

Na Flip de 2011, um escritor húngaro, Péter Esterházy, precisou ler um trecho de seu livro em alemão. Era uma questão prática (não havia um tradutor simultâneo do húngaro). Após a leitura e antes de começar o debate (que seria feito em alemão também), pediu para dizer uma coisa — que me pareceu uma forma sutil e garbosa de dizer que, para ele, não ler em húngaro fazia, sim, toda diferença.

"Antes de começar", falou, "quero dizer que não tenho nada além das palavras. Mais especificamente, as palavras húngaras. Elas representam todo o meu valor. Construo tudo com elas: meus sentimentos, minha mãe, meu pai, a morte da minha mãe. No fim, só existe isso: o que eu construí com essas palavras."

2
Chamava-se La Catedral. Ficava nas montanhas, a cerca de meia hora de Medellín, com vista privilegiada da cidade. Durante um ano, entre junho de 1991 e julho de 1992, foi a morada de Pablo Escobar, o maior traficante de drogas da história.

Quando se entregou à polícia, em 1991 (fruto de um acordo com o Governo que invalidava a lei de extradição vigente no país), Escobar impôs condições, aceitas pelo então presidente César Gaviria. A principal delas era ser recolhido numa prisão construída por ele mesmo, no lugar que escolhesse (um terreno que pertencia ao próprio Escobar), vigiada por seus homens e sem restrição de visitas – que subiam à sede em confortáveis Toyota Land Cruiser de carroceria vermelha e cabine branca.

“Eu achava que meu pai ficaria alguns anos ali, deixaria de cometer crimes, se recuperaria, para então voltar para casa”, me conta Juan Pablo Escobar, filho do traficante, por telefone — autor do recém-lançado Pablo Escobar, meu pai: as histórias que não devíamos saber. “Mas com o passar do tempo se tornou mais e mais evidente que em La Catedral meu pai trataria de reorganizar seu aparato militar e redesenhar as rotas do narcotráfico.” Juan Pablo conta que quando perguntou sobre o lugar para sua mãe, ela disse: “Meu filho, é como se fosse uma das nossas fazendas”.

De fato, La Catedral contava com: mesas de bilhar, de pingue-pongue, campo de futebol equipado com sistema de drenagem — jogadores da seleção colombiana, como o goleiro René Higuita, eram figuras cativas. A comida era preparada por três chefs. Havia um médico da família, sempre disponível. Uma varanda semicoberta dava acesso às celas-suítes. A de Pablo tinha um cômodo de vinte e cinco metros quadrados na entrada e mais vinte e cinco metros de quarto, além de banheira, sauna, escritório com escrivaninha, sofá, tapete de pele de zebra e lareira.

Em julho de 1992, porém, tudo chegou ao fim. A execução de dois comparsas acusados de traição tornou insustentável a permanência de Escobar na Catedral. Ficou decidido que ele seria transferido para outra prisão, mas o traficante não aceitou. Fugiu com nove homens por uma saída secreta que ele mesmo mandara construir.

Escobar seria morto um ano depois, em 2 de dezembro de 1993, em Medellín, aos 44 anos. Hoje, no lugar onde ficava La Catedral, funciona uma comunidade beneditina.

3
“É metafísica ou putaria das grossas?”, pergunta um personagem de Contos d’escárnio que, ao lado de O caderno rosa de Lori Lamby e Cartas de um sedutor, compõe um dos capítulos mais destemidos e anárquicos da literatura pátria. A história é sabida: aos 60 anos, depois de 28 livros publicados (entre poesia, ficção e teatro) e escaldada com o silêncio da crítica, Hilda Hilst (1930-2004) decide renunciar à literatura “séria” e se dedicar a: histórias pornográficas, aventuras lúbricas cheias de cus, paus e xoxotas — ou, como preferia, suas “adoráveis bandalheiras”.

Embalada pelo discurso de uma guinada literária para “baixo”, à cata de leitores e atenção do mercado (“já que não consigo vender meus livros, quero escrever histórias de sacanagem para caminhoneiros baterem punheta”), Hilst cria, ao contrário, textos de altíssimas qualidade e capacidade de provocar. Quatro pontos a serem destacados: 1) Hilda está muito à vontade entre os amigos Sade, Bataille & cia; 2) zomba de todo ascetismo da vida intelectual; 3) sapateia sobre as solenes Senhoras de Santana; 4) e atesta: “fora do corpo não há salvação” — isso tudo com muita verve; no duro, como escreve bem.

Esta nova edição reúne os três livros citados, o volume de poesia Bufólicas e o inédito Fragmento pornográfico rural. Traz ilustrações de Millôr Fernandes, Jaguar, Veridiana Scarpelli e Laura Teixeira; textos críticos de Caio Fernando Abreu, Humberto Werneck, Jorge Coli, Alcir Pécora, além de uma preciosa análise da professora Eliane Robert Moraes. E tem capa rosa e título chick lit (a dita “literatura de mulherzinha”): Pornô chic — o que poderá fazer, enfim, Hilda brilhar na mesma prateleira da Bridget Jones e da Anastasia Steele.

Mas, óbvio, o buraco é mais embaixo. Além de implodir todo e qualquer Cinquenta tons de cinza (o que, convenhamos, nem é preciso dizer), a tríade obscena de Hilda nos dá a impressão de que boa parte da literatura “séria” à nossa volta — tantas vezes assexuada, convencional, com seus lamentos, vitimismos e moral semivitoriana — é ela mesma uma grande e rosa prateleira de chick lit. Esse é o real veneno da sua prosa.

Uma história contada por Hilda: “Quando recebi as provas de meu livro Kadosh, no lugar da palavra cu, aparecia sempre co ou ca ou ci. Cu mesmo, nunca. ‘O que é que há de errado com o cu?’, eu me perguntava. Deviam ser freirinhas ou noviços que manipulavam a gráfica, não sei. Obsceno não é o cu, mas as bombas de Napalm, eu pensava. Essas são, no fim, as verdadeiras obscenidades”.

4
Peso = leveza. Demonstrar essa equação foi a vida de João Batista Vilanova Artigas, ele mesmo um sujeito compacto. Movia-se (e pensava) com agilidade, e foi com essa leveza que esgrimiu suas casas e prédios — impressiona que tenha conseguido isso à base de tanto concreto e de estruturas de tão grande porte.

No documentário que deve chegar aos cinemas em junho, mês que completaria 100 anos, sua neta e diretora Laura Artigas nos conduz por seus projetos mais emblemáticos. Estão lá a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (1961), o icônico Louveira, edifício no bairro paulistano de Higienópolis (1946), o estádio do Morumbi (1953), que precisou de “quase uma hidrelétrica de concreto para ficar pronto”, entre outros.

Além de reflexões de historiadores, amigos e arquitetos, como Paulo Mendes da Rocha (principal discípulo de Artigas), o filme tem como trunfo depoimentos de gente comum, como um mestre de obras que trabalhou na construção da rodoviária de Jaú, o zelador do Louveira, um serralheiro (que exalta o padrão dos parafusos das janelas do prédio), um torcedor do São Paulo e um estudante da faculdade de arquitetura. Sobre as célebres claraboias da FAU, Mendes da Rocha diz: “Olha, é uma beleza um lugar onde o teto é de cristal”.

E as homenagens seguem. Para junho, o Itaú Cultural promete uma retrospectiva e projetos do arquiteto curitibano fazem parte de Latin America in Construction: Architecture 1955 –1980, exposição sobre arquitetura latino-americana em cartaz até julho no MoMA, em Nova York.

Para sua neta, Laura, dirigir o documentário foi também uma aventura pessoal, um jeito de saber mais sobre o avô, que conheceu pouco. “Só com o filme passei a enxergar a dimensão da obra, perceber traços do temperamento dele.” Morto há 30 anos, aos 69, o arquiteto foi membro do Partido Comunista, exilou-se no Uruguai depois do Golpe de 1964 e ficou conhecido como um dos principais expoentes do chamado novo brutalismo, escola inglesa cuja marca é o uso do concreto armado. Se o charme tem a ver com agradar delicadamente, Artigas alcançou isso numa obra dura, de linhas retas, “sem concessão a barroquismos”, como ele mesmo diz, no filme. “Gosto de criar estruturas pesadas que toquem o chão de forma leve", diz, "para que o observador pense: 'Isso pode cair a qualquer momento'."
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segunda-feira, 7 de setembro de 2015

um afogamento (contado pelo chat)

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Trecho de Leaving the Atocha Station, Ben Lerner, 2011:

ME: you there? what’s up in xalapa
CYRUS: Yeah. Went on a kind of trip this weekend. Planned to camp
ME: i was going camping here for a while
ME: hello?
CYRUS: I remember. It’s hard to imagine you camping, I must say. Anyway, we drove to the country to see some pueblos, walk around
ME: cool
ME: what did you see
CYRUS: There was a bad scene there
ME: you mean a fight with jane?
CYRUS: No. Although we’re fighting now, I guess
ME: stressful to travel together if you haven’t before
CYRUS: Well we were walking
ME: still there?
CYRUS: along a river and
CYRUS: I’m still here, yes. Jane wanted to swim, but I was a little worried about the current. Not to mention the water did not strike me as particularly clean
ME: my brother once picked up a parasite swimming in a lake and was sick for a month
CYRUS: Right. And Jane launched into this speech about — half joking — about how I was afraid of new experiences or something, how I was always happier as a spectator. Not a fight, just teasing, albeit
ME: i hate new experiences
CYRUS: emasculating teasing. Something about that being what was wrong with poets ME: the new poems are great, btw
CYRUS: I guess I should mention we were smoking a lot of that Acapulco Gold
ME: so what happened with
CYRUS: or whatever it is. Very staticky. Or at least I’d been smoking it. Vaguely reminiscent, incidentally, of certain Topeka strains, but more powerful. Anyway we walked along the river and it eventually opened out and where it was wider we encountered some people swimming
ME: americans?
CYRUS: Locals. There are no tourists here in winter, it seems
ME: right
CYRUS: There were two men swimming, or one swimming and one more like wading. The current looked pretty strong. One of the men, his girlfriend was on the bank — in a swimsuit — and he was trying to convince her to get in, to swim
ME: don’t like where this is going. she was scared of the current?
CYRUS: Maybe. Maybe just the cold
ME: what is the weather like there
ME: madrid: cold and raining constantly
CYRUS: Warm to hot. It was like 80. Which is unseasonably warm, I guess. The air is filthy. But the water still chilly. Anyway, Jane — we were on the opposite bank as the swimmer’s girlfriend — Jane wanted to swim
ME: she had a swimsuit?
CYRUS: and did get in the water, although I told her I didn’t think
CYRUS: Yes, we both had swimsuits on under our clothes. It was not, I told her, a good idea, because of the current
ME: knowing her, i’m sure that was a goad
ME: might egg her on
CYRUS: Yes. She got in and while the current was strong was fine. Then the other swimmers, they were saying to the girlfriend, see, this girl got in, no problem, and then Jane started telling me to come into the water. So there I was opposite the girlfriend on the bank, both of us being pressured by the swimmers to join them. The girlfriend and I kept looking at each other with nervous smiles
ME: if one of you got in the other would have to
CYRUS: I felt that
ME: a game of chicken. you two should have left the others and gone off and had
CYRUS: Or at least if she got in I would have to. But she probably could have remained on the bank 
ME: a wonderful life together!
ME: right. she would not be emasculated
CYRUS: but I was, I admit, feeling the pressure. Jane was there with these other men in the water, the current clearly manageable. I felt cowardly and American
ME: you have to stay strong — cowardice of your convictions
CYRUS: Yeah, well, I got in. The current was actually stronger than I imagined. There were pockets of strong current. Where the river narrowed a little farther down I could see what looked like serious rapids
ME: and then the girlfriend jumped in
CYRUS: Well
CYRUS: not at first. But now everyone kind of turned to her. We’d all become one group, somehow. And her boyfriend had changed from teasing her to encouraging her, his arms open, lovingly — it’s fine, I promise, I’ll protect you, etc. We were
ME: how bad is this going to get?
CYRUS: also encouraging her, I think. And laughing and screaming at the cold she jumped in. She was fine at first
ME:!
CYRUS: but as she kind of splashed around — she didn’t really know how to swim, it didn’t seem. I don’t know, she moved somewhat downriver where the current became pretty strong, and she was getting upset
ME: so someone went and helped her?
CYRUS: Things
CYRUS: things got very bad very fast. she went underwater for a second, and when she resurfaced, she was a little farther down and totally panicked
ME: jesus
CYRUS: She was screaming and water was
ME: jesus 
CYRUS: getting in her mouth and she was struggling against the current in the wrong way
ME: couldn’t somebody get her
CYRUS: Her boyfriend was trying but there were enough stones and other shit that it was taking awhile. And he wasn’t much of a swimmer either, didn’t know, I don’t think, what to expect from or how to manage the rapids. Jane tried to go
ME: tried catch her?
CYRUS: Yes. I held her back. As I was holding her back I saw the girlfriend go under again, then reemerge briefly another, I don’t know, ten feet down
ME: fuck CYRUS: where the rapids were intense, and then she was really swept downriver. So CYRUS: so Jane and I ran back onto the bank and to the truck and then, yelling something about what we were doing to the other swimmers — the friend was holding the boyfriend back who was now screaming — screaming in a very primal way, you understand — not screaming words. So we drove downriver hoping to get in front of her, to fish her out of the river or something
CYRUS: You there?
ME: i’m here
CYRUS: So we had to return to the main road and then floored it for a little while then jumped out of the truck and rushed back down to the water. We could still hear the boyfriend screaming
ME: but you got in front of her
CYRUS: The river had widened again and then there was some sort of dam, and she went over the dam before we could figure out what to do
ME: she was conscious?
CYRUS: She didn’t seem to be struggling. It was kind of hard to see, or at least it’s hard for me to remember. So we had to get back into the truck and drive farther down the river again — there was no other way
ME: go on
CYRUS: There was no other way
CYRUS: so on the other side of the dam there was a kind of pool — no current. And her body was there. And we rushed into the water and dragged her to the shore
ME: was she breathing
CYRUS: No
ME: so what did you
CYRUS: We laid her on the bank and I gave her or tried to give her mouth to mouth. She didn’t seem, I can’t really say what I mean by this, given that she wasn’t breathing, but she didn’t seem dead. Her white
ME: jesus, man
ME: i don’t even know how to give cardiopulmonary resuscitation
CYRUS: shirt, her undershirt, was pulled up over her head. I had to pull it back down over her breasts. Which was somehow embarrassing. She was cut up pretty bad
CYRUS: Neither do I, really. I tried. She kind of, I don’t know, threw up in my mouth
ME: you mean was revived — spit out water — so she was alive
CYRUS: No. There was vomit in her mouth I guess. And then I threw up onto the bank. She was dead
ME: jesus. i am so sorry you
CYRUS: I tried again. I didn’t know what I was doing. Our teeth, I can’t get this out of my mind, I accidentally clicked my teeth against her teeth at some point, like
CYRUS: like in a clumsy kiss or something. Prom. And I kept thinking of course that she had only got in the water because I had got in the water
ME: no way to blame yourself for any of this
CYRUS: And I was also worried that the cpr had killed her, I think I was pressing way too hard on her chest — or that
ME: what is jane doing during all of this
CYRUS: she would have been, at least, revived in better hands
CYRUS: I don’t really know. Helping me I guess
ME: so she was dead
CYRUS: She was dead
ME: fuck, man
ME: what did you do then
CYRUS: We could hear the boyfriend screaming again. Except now I think he was injured too. He was closer. He probably got in the water again and broke an arm or leg or whatever. But he was screaming “kill me” or something from the bank. He wasn’t screaming about his injuries. He knew she was dead
ME: what did you do
CYRUS: We took her body, Jane and I carried her body to the truck and raced toward the pueblo. We were maybe pretending a little to ourselves there was still something to be done, I mean, that fantasy was somewhere in our bodies — she was of course dead. But we, I mean, nobody had a phone
ME: i thought you had a cell phone
CYRUS: Broke a long time ago. So the first place we found that had people, phones, was a roadside restaurant a few minutes before the pueblo. We got out and I managed to scream out what had happened as I pointed to the body and a couple of men from the restaurant rushed out and helped us lay the body there, on the ground. Her eyes were wide open, by the way, and her mouth
ME: jesus
CYRUS: Various people gathered around, and somebody mentioned calling the police, and I guess we managed to communicate that there were others by the river — the injured boyfriend, his friend. A couple of people from the restaurant got in a car and went for them. And an old woman, she brought us some limes
ME: limes?
CYRUS: She brought us two lime wedges and said something about shock and that we should suck them and we did. Someone covered her with a blanket. I saw the pay phones and I had a calling card in the truck and I went to one of the pay phones in a daze. I think I threw up again. But I called my dad, I was desperate to ask him about the cardiopulmonary resuscitation, to see if I had maybe killed her or at least missed an opportunity to save her. Something like that. I wasn’t
ME: you did everything you could. i’m so sorry
CYRUS: thinking clearly. And my teeth were chattering and each time they clicked I remembered her teeth
CYRUS: I did get my dad on the phone. Who knows what I sounded like. I was very confused, certainly. Sobbing. Managed to ask about the cardiopulmonary resuscitation, if I had done it wrong. He reassured me, although I don’t remember what he said. That nothing was my fault. That she would have already choked on her vomit or something. Not that a psychiatrist knows anything about cardiopulmonary resuscitation. I also think he said something about my coming home
ME: none of this is in any way
CYRUS: I got off the phone and went back to the truck. One of the people who worked at the restaurant said we could go so we left
ME: your fault
ME: you didn’t wait for the police?
CYRUS: Fuck no. We just left. We drove back to the apartment in total silence. We had put our clothes back over our swimsuits but were dried off from the heat by the time we got home. Like I said it was in the 80s. But my teeth were still chattering
ME: you didn’t talk about what happened at all?
CYRUS: We did later. Kind of. After we showered, we both realized we hadn’t eaten all day and although I felt sick I felt hungry, really hungry. We went to a little restaurant near our place we always go to. We started WHICH know I hate but which helped get this taste out of my mouth. We talked about it then
ME: what did she say
CYRUS: The taste is back, by the way
CYRUS: She was shaken up in her way. She said she wished she’d never got in the water. But she also seemed excited. Like we had had a “real” experience
ME: i guess you had
CYRUS: Yeah but I had this sense — this sense that the whole point of the trip for her — to Mexico — was for something like this, something this “real” to happen. I don’t really believe that, but I felt it, and I said something about how she had got some good material for her novel
ME: is she writing a novel
CYRUS: Who knows
ME: and she responded how
CYRUS: She’s probably writing a novel now
CYRUS: She was quiet. I’m sure she was angry/hurt. Then she said something about how this just is the world, that things like this happen, that one can be as cautious as one wants, can waste one’s life being cautious, but that there is no avoiding the reality of death. I remember laughing at the phrase “reality of death” to show I thought it was an embarrassing cliché
ME: have you two made up
CYRUS: No. Yesterday we were both in the apartment reading and smoking but barely talked. We haven’t really spoken to each other today
ME: well, you both probably just need some time, right? i mean, this would shake anybody up
ME: i am really sorry
CYRUS: Yeah
ME: about all of this
CYRUS: Thanks
CYRUS: How is Spain?
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sábado, 18 de julho de 2015

see, my wait is you

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"Symphonia IX (My wait is U)", Tele/visions, 2013 (Grimes cover)

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Cena do Ouija Board, "Inherent Vice", 2014
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quinta-feira, 14 de maio de 2015

inclusive quando se nega a fragmentação

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"Em meados de 1999 comprei (ou melhor, paguei em muitíssimas prestações) um desses computadores imensos que funcionavam com o Windows 95, e eu não sei se esse inverno foi tão terrível como o recordo ou se eu não estava agasalhado o suficiente, mas o fato é que adquiri o hábito de aquecer as mãos na CPU e um dia até a enfiei na cama e dormi várias noites abraçado a ela. Gosto desta imagem: um objeto que então parecia muito sofisticado acabava se prestando a um objetivo tão básico como servir de coberta. Anos depois incluí essa anedota em 'Recuerdos de un computador personal', um relato que escrevi com a ideia de mostrar os computadores como objetos de época, como avanços superados. Era uma maneira elíptica, também, de falar das gerações literárias, porque naquela época alguns escritores ainda insistiam no computador como emblema do novo: pensei que tinha graça demonstrar ou pelo menos expressar a obsolescência dessas máquinas (e desses discursos).

Não creio que seja função da literatura imaginar o iPhone 18, mas seria absurdo comportar-se como se as periódicas mudanças tecnológicas experimentadas nos últimos 30 anos não tivessem alterado nossa experiência do mundo, nossa vida cotidiana e nossa forma de escrever.

Os romances mudaram quando começamos a escrevê-los no computador? Claro que sim, mas é necessário ver de que maneira. Diz-se que antes era mais difícil escrever um livro, mas isso é entender a escrita como atividade física, como se o romance fosse melhor quanto mais calorias tivesse perdido o autor ao escrevê-lo... É como quando os críticos não se atrevem a fazer uma resenha negativa de um livro de muitas páginas porque imaginam o grande esforço para escrevê-las. Também se diz que agora é mais fácil ou mais frequente começar escrevendo o final ou qualquer frase do meio, mas a verdade é que nenhum romancista nunca foi obrigado a começar pelo primeiro parágrafo do livro.

Flaubert teria demorado menos cortando e colando como um condenado, maravilhado com esses comandos que permitem procurar e substituir, detectar cacofonias e todo tipo de recorrências, em busca da perfeição? Quem sabe. Por outro lado, é inegável que os processadores de texto sistematizaram a lógica da montagem. Alguns escritores acham que a maneira de ser ou parecer modernos (ou pós-modernos ou pós-pós-modernos) é adotar, em seus textos, estruturas próprias dos blogs, ou dos chats. Mas até nos textos mais conservadores se adivinha a montagem: inclusive quando se nega toda fragmentação, inclusive quando, como faz Jonathan Franzen, se imita o paradigma clássico, o texto deve mais à estética das vanguardas históricas que ao modelo do realismo do século 19. Hoje mais do que nunca o escritor é alguém que constrói sentido juntando pedaços. Cortando, colando e apagando."

Alejandro Zambra, trecho de conferência lida na Faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade do Chile, 2013
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quinta-feira, 19 de março de 2015

delay, reverb, echo

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fotos das séries Nocturnes (2012), Bach Yard (2011) e Site/Cloud (2012-13)

"If you look at music or film, there is time there. In other words, the work has a clear beginning and end, and in between, you shut out your daily life—you throw yourself into the work. There’s no element of duration to your experience of a photograph; it’s closer to an object. I felt that this was an extremely weak point of photography. So, I’m aware that photography can’t function in the same way as films or music, but I wonder whether it isn’t possible to create a way for photographs to carry time within them. When you’re going to sleep, you think about the stuff that happened to you that day, right? You might see some images, but they’re completely distant from what really happened—they’re hazy. You’re trying to recall something, and photography can also recall things in this way. Of course my photographs do function as some sort of record, but there’s no agreement between the photograph and my own recollection of what happened. The impression is completely different. I think using these effects of delay, reverb, and echo (in photographic terms, developing the film "badly" and so on) might be a way to alter the sensation of time in a visual way." (Mais Yokota, aqui)
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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

mantendo as coisas plenas

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"Num campo
Sou a ausência
de campo.
É sempre assim.
Onde quer
que eu esteja
sou o que falta.

Quando ando
separo o ar
e o ar
sempre volta
para preencher o espaço
onde meu corpo esteve.

Todos temos razões
para andar.
Eu ando
para manter as coisas plenas."

"Mantendo as coisas plenas",
Mark Strand, 1964 (tradução Bernardo Carvalho)
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